O Nordeste vermelho de resistência está encharcado de óleo que marca a pele
Parece praga rogada por algum deus desconhecido. O Nordeste vermelho de resistência está encharcado de óleo que marca a pele, que mata peixes, tartarugas e todos os animais vivos e mata o azul do mar. E tenta asfixiar o corajoso povo nordestino.
Será por acaso que todas as paradisíacas praias do Nordeste inteiro foram infestadas de óleo de um dia para o outro, norte a sul, leste a oeste? De onde veio a praga? Quem a rogou? Como não se descobrem os responsáveis?
O povo nas praias, nas comunidades faz aquilo que o governo federal e seus poderosos instrumentos, Exército, órgãos de cuidado e investigação, equipamentos, ciência e tecnologia dos mais avançados já existentes por causa do pré-sal, não está fazendo.
Mas deveria estar fazendo no considerado maior desastre ambiental da história, afetando vidas humanas, desmontando a economia, deixando sem pão milhares de pescadores e centenas de comunidades sem defesa e, quem sabe, sem futuro.
É como se o Nordeste e suas praias estivessem sob estado de sítio, sem poderem se mover, sem saber o que está acontecendo. Um governo federal, como o atual, que não se preocupa com a Amazônia, um presidente da República que anunciou ter ‘potencializado’ as queimadas na Amazônia, um governo que detesta os nordestinos, suas escolhas políticas, suas lideranças, tem desprezo no mesmo nível a um desastre ambiental que, afinal, atinge pescadores que vivem de seu trabalho, comunidades pobres que acolhem viajantes.
O povo nordestino, no entanto, não está permitindo que o estado de sítio seja completo e domine inteiramente a tudo e a todos. Assim como não permitiu nas eleições de 2018 que a direita conservadora tivesse uma vitória avassaladora. Armado de sua coragem e de seus instrumentos, organiza-se, vai para as praias, recolhe toneladas e toneladas de óleo, salva peixes e tartarugas, limpa as águas e o azul do oceano da praga vinda ainda não se sabe de onde e por ordem de quem.
Hoje não é no ABC paulista que está a vanguarda política de mudança. Como nos anos 1970, com as greves, as mobilizações de massa, com Lula, com o próprio povo nordestino tangido dos sertões e da caatinga para o Sul maravilha e que lá se organizou, lutou contra a ditadura e os poderes estabelecidos por direitos, por democracia.
Nem está no Sul bem ao sul a vanguarda, como nos anos 1980/1990, com o surgimento do Orçamento Participativo, aplaudido e copiado no mundo inteiro, e, seu fruto, o Fórum Social Mundial, o FSM, que falava e ainda fala de ‘Um outro mundo possível’.
Está-se vendo hoje que um outro mundo continua não só possível, quanto urgente e necessário, e a linha de frente de sua construção está no Nordeste e no povo nordestino.
Estão aí os exemplos das cisternas de placa que vieram dar vida e água ao povo que morria de fome e sede. Estão aí as experiências de Economia Solidária espalhando-se por todos os cantos e garantindo sobrevivência digna a um povo que historicamente passou fome.
Estão aí os governos populares e democráticos espalhando-se em todos os Estados nordestinos, fruto da luta e consciência cidadã. Estão aí as sementes crioulas e agroecológicas dando comida boa, adequada e saudável.
Estão aí as comunidades organizadas sob as bênçãos dos Dom Helder espalhados e semeando justiça e liberdade. Estão aí as lições de quem aprendeu a conviver com a seca e o semiárido, a amar sua terra e dela tirar seu pão, nela ser capaz de produzir frutos, sementes, flores, justiça e liberdade.
O estado de sítio, mesmo quando decretado autoritariamente e contra o povo, não dura eternamente, ainda mais quando decretado contra um povo resistente à seca, capaz de sobreviver à dureza de anos sem chuva, mas onde o mandacaru sobrevive, assim como a gente que olha o futuro com esperança.
Como diz o poema de Washington Tavares, ‘Nordeste de Mãos Limpas’, olhando a praia de Mangue Seco, Igarassu, Pernambuco, em 26.10.19, ‘ao entardecer’: “Nordeste, cabra da peste/ que de covarde não se veste,/ que as minhas mãos eu empreste/ pra mode de limpar este mar./Mas dentro, esse povo é tão forte,/ com pirão e moqueca veste a morte/contra o óleo já se ajuntou.../ Doutor... É ‘véio, muié, mininu’,/ cachorro, bode, felino/ que se uniram em amor!”
Edição: Marcelo Ferreira