Rio Grande do Sul

ENTREVISTA

Torre das Donzelas: Resiliência feminina em tempos de repressão da ditadura

O Brasil de Fato RS entrevistou a cineasta Susanna Lira, que esteve em Porto Alegre durante a mostra Ela na Tela

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Entrevista com a diretora do documentário foi realizada em uma roda formada só de mulheres
Entrevista com a diretora do documentário foi realizada em uma roda formada só de mulheres - Foto: Fabiana Reinholz

Um giz branco rabisca o quadro negro. Várias mãos dançam sobre a lousa para rememorar aquilo que tentaram apagar e destruir. Uma memória. Uma história de mulheres que lutaram pela democracia, pagando com a sua liberdade. De um espaço fechado, cercado por portões, cadeados, abre-se um caminho de sororidade que vai se tecendo, compartilhando dores, saberes, vidas, feminismo solidário. De um desfile inusitado de vestidos de festa ao banho de sol para “abrandar a loucura”. A história de uma Torre que abrigava mulheres, que como elas mesmo afirmam, não tinham nada de donzelas.

A luta para que se mantenha viva a memória frente a um silêncio que ainda persiste, silêncio esse que assusta e incomoda a cineasta Susanna Lira, que esteve esse final de semana em Porto Alegre. O seu documentário “A Torre das Donzelas” foi apresentado na Mostra Ela na Tela, seguido de bate papo. Em sua quinta edição, a mostra foi realizada na Casa de Cultura Mario Quinta, no centro histórico da Capital. Uma hora antes da exibição do longa, Susanna, conversou com o Brasil de Fato RS, em uma roda formada só de mulheres, para falar da narrativa construída, do feminismo pulsante, do machismo existente no passado e no presente, e de um tema muito em voga e muito caro, a sororidade feminina.

Para contar a história dessas mulheres, a cineasta levou-as à reconstrução, baseada nas memórias delas, da Torre das Donzelas, nome dado ao conjunto de celas do Presídio Tiradentes, onde as presas políticas eram mantidas em São Paulo na década de 1970. O Presídio Tiradentes, lugar onde ficava a Torre, foi demolido em 1972 para as obras de construção do metrô de São Paulo. Ao todo foram entrevistadas 35 mulheres, dentre elas, a ex-presidenta Dilma Rousseff, Ana Bursztyn-Miranda, Maria Aparecida Costa, Rita Sipahi, Nair Benedicto, Leslie Beloque e Janice Theodoro da Silva, entre outras. Em um estúdio, onde foi reconstruída a Torre, durante 15 dias, um grupo das mulheres que passaram pelo presídio, revisitaram suas histórias coletivas que o silêncio e a destruição tentam apagar.

Cena do filme com as mulheres que estiveram presas durante a ditadura | Foto: Divulgação 

“A destruição do presídio Tiradentes, da Torre das Donzelas, é destruir a história delas também. Reconstruir é doloroso, mas é importante. Se tem uma coisa que a gente pode fazer no cinema é reconstruir coisas, e a reconstrução do sentido do espaço foi muito importante para combater, para resistir esse apagamento de memória da ditadura. A gente não tem espaços, como a gente tem no Chile, aquele memorial super importante, com tem no Uruguai, e na Argentina, em outros países. Enfim, não é à toa que esses espaços existem, e não é à toa que eles foram apagados no Brasil. Junto com o silêncio, esse apagamento de memória também destrói tudo”, aponta Susanna.

O filme que levou sete anos para ficar pronto, já venceu os prêmios de Melhor Direção de Documentário e Melhor Documentário pelos júris oficial e popular no Festival do Rio, de Melhor Filme pelo júri popular na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e do Prêmio Especial do Júri no Festival de Brasília. Susanna, formada em jornalismo, com pós-graduação em Direitos Humanos, tem mais de 11 trabalhos, que grande parte fala de temáticas sociais, com protagonismo das vozes que por vezes são as mais silenciadas. Além de documentários, longas e curtas, é criadora, roteirista, diretora e produtora Executiva da série Rotas do Ódio, dirigiu episódio da série Outros Tempos e foi diretora da série Em busca do Pai.

Suzzana Lira esteve concedeu entrevista ao Brasil de Fato RS | Foto: Fabiana Reinholz 

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato RS - Nesse sábado tu estás participando da Mostra Ela na Tela, uma mostra só de mulheres, e trazendo novamente o filme A Torre das Donzelas a Porto Alegre, que já esteve em cartaz aqui no Cinebancários. Para começar queria que nos falasse como foi esse processo de elaboração, produção, desse documentário que no meu entendimento não deve ter sido fácil, porque rememora situações dolorosas das pessoas que participam desse filme.

Susanna Lira - Primeiro queria agradecer o convite de vocês para estar aqui, acho que é muito importante registrar essa visita aqui em Porto Alegre. A última vez que estive em Porto Alegre foi para entrevistar a presidenta Dilma, e Télia (Negrão) foi a pessoa responsável para conseguir essa entrevista que eu demorei 4 anos para fazer. Principalmente, por estar com mulheres tão especiais aqui, acho que o jornalismo, também sou jornalista de formação, é uma atividade de resistência sempre, quando você está do lado certo da história, que é o lado da liberdade e da democracia. Estou muito feliz por estar aqui podendo compartilhar com vocês.

O filme demorou sete anos, o processo de pesquisa, construção da narrativa do filme, conseguir que as personagens falassem, foram 50 anos de silêncio. Eu filmei a torre 45 anos depois que elas estiveram lá. Então são silêncios muito difíceis porque são traumas. Quem trabalha com trauma e trabalha com pessoas que foram torturadas sabe como é difícil, por isso a minha paciência de tanto tempo, uma perseverança.

Chegou um momento que eu falei: “essa história não é de vocês, essa história é nossa, é preciso que vocês compartilhem”. E foi nesse dever cívico de compartilhar uma história que elas sabiam que apesar de doloroso o que elas tinham vivido na própria pele, era uma história do Brasil que precisava ser contada, principalmente no momento em que a gente estava vivendo um pré-impeachment no país. A gravação ocorre em 2016, e a presidenta Dilma chegou até marcar com a gente de ir na torre que é o lugar que eu ergui. Duas vezes ela desmarcou porque antecipavam a defesa dela. Então a entrevista dela é fora da Torre.

Foi um filme muito difícil, foi difícil lançar. Ganhamos o prêmio de melhor documentário na Mostra de São Paulo, um prêmio de R$ 100.000,00 da Petrobrás que a gente não recebeu. A gente teve que devolver um dinheiro de patrocínio dos Correios que tínhamos recebido. Enfim uma série de coisas que eu imaginava com essa mudança política que a gente ia sofrer. Mas apesar de tudo isso, todos os anos de espera, todas as coisas que a gente viveu, que valeu muito a pena. Eu acho que falar desse momento não é só falar de feridas, mas é falar de força para lutar. O filme tem uma questão de resiliência de mulheres que conseguiram se construir em situação de extrema repressão. Para a gente, hoje, o filme não é um filme só de memória, mas é um filme para a frente, para ver como eu posso, no momento atual político que eu vivo, ainda assim conseguir sobreviver. Por isso eu fico sempre muito honrada em poder estar nas apresentações do filme que é poder falar isso para as pessoas, não é um filme só sobre dor, é um filme sobre força, e sobre como resistir a momentos como esse que a gente está vivendo hoje de extrema repressão.

"Filme demorou sete anos, o processo de pesquisa, construção da narrativa do filme" | Foto: Fabiana Reinholz 

BdR RS (Télia) - Eu adorei teu filme, me emocionou. Você sabe que eu estive nos bastidores da gravação, e foi muito emocionante aquele momento. Mas eu queria te fazer uma pergunta assim também como feminista. Você partiu do pressuposto de que a experiência na tortura, na cadeia para as mulheres teriam significado diferente do que em geral as pessoas têm, os homens têm?

Susanna- Com certeza, isso até está no filme. Primeiro que aquelas mulheres naquela época ocupavam espaços que não eram espaços, digamos, do feminismo que se esperava. Muitas estavam entrando na universidade contra a vontade dos pais, muitas já tinham relações sexuais, vida ativa, e que para eles isso era uma coisa completamente fora, tomavam anticoncepcionais.

Havia uma revolução de costumes também na vida daquelas mulheres que é muito significativo falar. Elas não só lutavam pela democracia, mas lutavam também pela mulher, pelo espaço feminino. Mesmo os nossos companheiros de esquerda tinham preconceito: “ah mulher não vai poder ir à luta armada porque ela menstrua, porque ela pode engravidar”, uma série de conceitos que infelizmente a gente vê até hoje, tem muita coisa que a gente avançou, mas esse espaço do feminino ainda é um espaço muito controlado pelo masculino. Então assim, “ah isso aqui tudo bem, isso aqui ok vocês podem”. Esse espaço que a gente conquista, que abre, acho que o filme fala muito disso, tanto para os companheiros de esquerda, quanto para os torturadores. Os torturadores tinham uma raiva dupla: “o que vocês estão fazendo aqui, porque não estão em casa cuidando dos seus filhos”, tinha muitas mães.

Então acho que havia uma dupla tontura, uma tortura um pouco mais raivosa por conta dessa mulher, além de quebrar o padrão de ser mulher naquele lugar, ainda estava lutando por um ideal, que era a democracia no Brasil. Acho que isso é um fator que eu trabalho no filme. Acho que tem muitas questões feministas, pra mim o filme é essencialmente feminista. Não posso dar spolier para quem não viu o filme ainda, mas tem momentos bem significativos desse feminino biológico também, não só político e social, mas biológico, acho que o feminismo abarca todas essas questões. Então sim, partimos de um conceito completamente de olhar a mulher nesse ponto de vista daquele lugar para dizer o que essas mulheres estavam quebrando ali, não é pouca coisa.

BdF RS (Stela) - Uma coisa me chamou atenção, é um filme que trata de tortura, de violência, prisão, um conjunto de coisas muito negativas, muito fortes, que teria tudo para ser um filme muito pesado, e a gente sair com muita tristeza, com muita carga de filme. E eu saí com muita leveza, com muita esperança, com muita força, e tudo isso calcado em coisas que são do círculo do feminino, da sororidade, do apoio que cada uma se deu naquele momento e por longo tempo, foram anos para algumas. Isso era uma coisa que tu esperavas quando concebeu o filme de chegar no resultado, foi uma coisa pensada ou algo que construiu ao longo da gravação e depoimentos?

Susanna- Obrigada por essa pergunta porque ela é muito importante no sentido de que é a mensagem do filme. Eu acho que a gente fala muito hoje do feminismo, da sororidade e a pouca prática disso. Eu acho que a Torre foi um ensaio incrível, é uma aula de sororidade máxima. Assim, se a gente pode beber na fonte dessas mulheres, essa fonte da sororidade, que é a troca, o acolhimento de uma para outra. Você sabe inglês e ela não sabe, ensina para ela, a gente tem tempo aqui, a gente pode compartilhar. Eu fico arrepiada de falar, porque eu acho que você pega esse conceito e se hoje traz para cá, a gente muda o mundo, a gente transforma tudo.

Claro que uma coisa não pensada, na realidade assim, quando eu quis fazer a Torre porque essa prisão foi tão diferente das outras, porque houve outras prisões femininas. E todas essas mulheres que saíram daqui são mulheres muito incríveis, muito representativas, e aí eu comecei a investigar o que aconteceu naquele lugar. E acho que diferente de muitos outros lugares, ali elas conseguiram realmente construir um espaço de construção, parece mais um pleonasmo, mas naquele caso cabe muito bem, porque elas foram pouco a pouco descobrindo que elas estavam juntas, e juntas elas podiam apoiar uma a outra e potencializar uma outra. É uma das partes que mais me emociona no filme, é você poder estar do lado e falar para ela, o que posso fazer por você como mulher. E a gente tem feito grupos lá no Rio, e às vezes é assim: uma mulher está cuidando do filho sozinha, outra diz “eu posso cuidar do seu filho hoje, vai namorar, vai tomar um chopp”, são coisas, às vezes muito pequenas, mas que a Torre ensinou.

Essa experiência da Torre me ensinou um feminismo, uma sororidade na prática muito criativa, e acho que elas foram muito criativas nisso, desde conhecer o próprio corpo, a compartilhar o idioma, os estudos de economia e política. Acho que quando você levanta outra mulher, você potencializa uma companheira sua, você fica forte também, não pensar só na gente, mas nesse coletivo. Então para mim essa é uma das melhores mensagens do filme, e foi construído com elas. Eu digo que o filme não é sobre as mulheres da Torre, é com as mulheres da Torre.

"Experiência da Torre me ensinou um feminismo, uma sororidade na prática muito criativa" | Foto: Fabiana Reinholz 

BdF RS - Um fato interessante que eu vi em uma das suas entrevistas anteriores é o fato de quando vocês as chamou não havia um roteiro pronto e esse roteiro foi construído nesse processo. É algo muito interessante do ponto de vista da própria produção cinematográfica.

Susanna - Sim, até porque você não pode com esse tipo de personagem de mulher chegar e dizer eu vou fazer isso, não, elas são indomáveis, e muito criativas. Então quem viveu naquela prisão e fez o que fez, eu acho que eu abrir espaço para essa construção coletiva, eu só ganhei com isso. Eu poderia fazer 10 filmes do material que eu tenho, são mulheres com cada frase, a própria Dilma, a gente tem uma hora de entrevista que eu poderia usar na íntegra, não teve nada fora do lugar. A gente poderia fazer outros filmes sobre, porque é tanta potência, é tanto conhecimento, é tanta experiência vivida na pele, que é pouca teoria. Quando elas falam você não vê teoria, você vê vida pulsando, experiência pulsando, isso tem muita diferença do que você falar sobre uma coisa e você ter vivido isso. Então foi muito importante elas estarem, elas continuam comigo, muitas não sabiam esse termo de sororidade, umas falam “aprendi com você esse termo, na verdade faço isso há muito tempo naturalmente”, e falei, é mas é um termo que hoje comunica com as feministas que eu acho que vai ser legal de trabalhar ele no roteiro. Mas foi incrível, o que estamos fazendo um pouco aqui hoje, mulheres compartilhando histórias.

BdF RS - Uma coisa que me marcou muito no filme foi quando uma delas fala dessa questão do silêncio, e que por muitos anos elas não conseguiam contar nem para os filhos, nem para o companheiro, enfim para as pessoas mais próximas, o que elas tinham vivido. E que talvez esse silêncio também tenha ajudado a nós estarmos vivendo a situação e a conjuntura que a gente vive hoje, em que muitas pessoas da população continuam defendendo a ditadura militar...

Télia: Você imaginava quando começou a fazer o filme que ele viria à luz nesse momento tão crucial, o silêncio e a volta de outro período autoritário também?

Susanna - Nunca imaginei. Era um filme de memória que acabou virando um manual de resistência. Eu acho que quem assiste a esse filme diz assim: eu posso resistir a isso que estamos vivendo. Então ele muda completamente, primeiro que quando eu faço o filme a Dilma é presidenta da República, e eu estava lá fazendo um filme sobre memória, um passado muito remoto, mas que é importante contar, sabendo que a gente tem que lembrar do passado para gente não repetir.

E acho sim que esse silêncio contribuiu enormemente para a situação política que a gente vive hoje. O fato das pessoas não saberem detalhes do que aconteceu, muitas mulheres na faixa de 40 anos para cima que foram ver o filme falaram “eu não sabia disso”, mas como, sabe, se você não tem uma família progressista, mais à esquerda que te contava ali as coisas, na convivência, você fica realmente totalmente alienado do que aconteceu, e é assustador. Porque às vezes a gente vive numa bolha, a gente fala vão falar de novo disso, e é importante falar porque realmente as pessoas não sabem. Saem do cinema chocadas, por um lado pelo que aconteceu, “como assim as meninas foram presas porque estavam carregando um panfleto lá na universidade”, eu disse “sim, e ficou três anos presa por isso”.

Acho que esse silêncio foi sim realmente responsável por tudo isso, não somente o silêncio, mas acho que o silêncio contribuiu muito. A própria Dilma fala isso no filme, a grande vitória da ditadura foi esse silêncio. A gente permitiu que um deputado, no momento de impeachment, elogiasse um torturador, que é um crime de lesa-humanidade, um crime imprescritível e essa pessoa está na presidência da República, ou seja, a gente foi para um lugar que realmente, o mundo, a sociedade internacional olha para o Brasil com pena da gente, porque são crimes que jamais poderiam ser mencionados, elogiados publicamente e essa pessoa ainda é eleita democraticamente.

É uma loucura o que a gente está vivendo, e acho que sim, parte desse silêncio vem disso e eu acho que agora nosso dever cívico é apresentar o que aconteceu, o que acontece até hoje. Porque essa política faz parte do sistema de apagamento de memória, a tortura permanece na segurança pública brasileira até hoje, isso passou para os negros, nós mulheres sofremos na pele o feminicídio como nunca antes, isso vem de um pensamento machista, misógino e que está presente e que a gente precisa mais do que nunca arregaçar as mangas agora e combater.

"Era um filme de memória que acabou virando um manual de resistência" | Foto: Fabiana Reinholz 

BdF RS (Stela) - Essa questão do silêncio foi também para mim uma das frases mais fortes do filme. Ele para mim é muito revelador de tudo o que é o Brasil com relação ao período da ditadura, que a gente não tratou do tema adequadamente, a maioria da população duvida de que isso tenha acontecido. Não temos isso na escola como um tema central, todas as tentativas de fazer resgate, com a Comissão da Memória e da Verdade, muitos países que passaram por isso resgataram isso de uma maneira mais rápida, mais séria, como o Chile, com o seu Museu dos Direitos Humanos, ou mesmo a Argentina, ou Uruguai, e a gente tem esse déficit histórico, essa dívida com esse período de 21 anos, que segue encoberto, silencioso. Esse documentário Torre das Donzelas, é parte de um resgate histórico muito importante. O silêncio segue, e é um silêncio histórico, é um silêncio do feminino, um silêncio de todas essas opressões, que são do patriarcado, da ditadura, do militarismo. Mas o filme cumpre muito isso de dar uma descortinada, mas mostra o quanto a gente tem que trilhar e o quanto a gente nesse momento está impedido de avançar nisso. Gostaria que tu falasse um pouco mais disso, pois para mim o filme tem muito valor nesse sentido.

Susanna - Acho que a quebra desse silêncio, falar é super importante, acho que o filme tem esse poder de viajar pelo mundo, viajar pelo Brasil como tem viajado. Essa semana a gente apresentou o filme no Diretório Nacional do Movimento Sem Terra (MST), na escola Florestan Fernandes, em São Paulo. E muitas pessoas da direção nacional do MST ficaram surpresas também por não saberem dessa história, e com a capacidade de superação dessas mulheres. Então muitos saíram de lá impactados, e são essas pessoas que hoje estão no front no Brasil, estão no front da guerrilha total, invisível. Também são essas pessoas que morrem e ninguém sabe porque morrem, os indígenas morrem, e são mortes encobertas.

A gente vive hoje um silêncio, e que também no filme fala e me chama muita atenção, não só o silêncio das mulheres que passaram muito tempo sem poder falar, mas também da sociedade. Uma das frases que mais me chama atenção é quando a Cida Costa fala que ela está sendo presa, e uma mulher, com um filho, num carrinho de bebê vira e fala: “morra sua terrorista, morra”, e ela falou que a frase ecoou com ela durante muito tempo. Essa morra terrorista, essas pessoas estão aí, essas pessoas estão aí falando alto agora. Confundindo o que é luta por democracia e liberdade, por algo que é, sabe, uma narrativa completamente equivocada do que é a nossa luta, do que é a luta da mulher.

E eu não estou dizendo nem politicamente, eu estou dizendo luta social, de estar viva, de poder trabalhar, de poder estudar, de poder ter os filhos, de não sofrer preconceito de salário, tanta coisa. Esse silêncio que a gente vive hoje, que viveu naquela época da sociedade, em oito meses de desmonte, a gente está sendo silenciado. A gente precisa recuperar o gatilho para conseguir criar estruturas entre nós, para reagir a isso de uma forma consistente, perseverante e eficaz porque o que a gente está vivendo hoje é tão assustador, e é muito mais assustador para mim a gente não estar fazendo nada. Estamos vivendo momentos no Chile e Equador... eu fui com o filme para o Chile, fui com o filme para o Equador. As pessoas olham para o filme e falam “nossa, o que vocês estão fazendo”, é muito louco eu não tenho resposta. Eu acho que agora meu questionamento é sobre o silêncio que a gente está hoje, por que a gente está em silêncio? Por que a gente está desse jeito? É muito triste. A gente está vivendo na pele, eu pelo menos vivo, a página do filme foi tirada duas vezes do ar por hackers, a página do Facebook do filme tem ataques sempre de pessoas falando que elas tinham que ter morrido e não presas, ataques horríveis, e essas pessoas não são punidas, esse discurso virou naturalizado, é um discurso completamente contra a humanidade. O que me assusta mais hoje, a gente viveu 50 anos de silêncio, aí abre uma cortina, mas que abriu pouco, temos que abrir mais essa cortina para que a gente consiga quebrar esse silêncio da sociedade hoje.

BdF RS - Você escolheu uma metodologia bastante etnográfica para o teu filme, porque no momento que estamos falando de derrubar e desconstruir celas, você reconstruiu uma grande cela para que houvesse uma revivência que obviamente produziu um efeito, acredito, emocional, afetivo, cíclico para todas essas mulheres que estavam lá. Eu te pergunto se você estava preparada para enfrentar essa situação ou para que elas pudessem refazer essa vivência. E a outra questão é sobre o simbolismo da reconstrução de cela com a reconstrução das ruas, que estamos tendo de novo na América Latina, se às vezes é preciso reviver algumas circunstâncias para se dar mais valor à liberdade, dar mais valor à vida, se isso é um olhar perverso, nós não precisaríamos passar por isso de novo. Gostaria que você falasse um pouco sobre isso.

Susanna - Quem não está pesquisando a fundo a questão do apagamento de memória, muitas vezes a gente aponta como é cruel refazer essas celas, fazer elas entrarem lá de novo, elas ficam tão emocionadas, ao mesmo tempo havia um desejo delas. A destruição do presídio Tiradentes, da Torre das Donzelas, é destruir a história delas também, reconstruir é doloroso, mas é importante, como o cinema tem esse poder, se tem uma coisa que a gente pode fazer é reconstruir coisas, e a reconstrução do sentido do espaço foi muito importante para combater, para resistir esse apagamento de memória da ditadura. A gente não tem espaços, como a gente tem no Chile, aquele memorial super importante, como tem no Uruguai, e na Argentina, em outros países. Enfim, não é a toa que esses espaços existem, não à toa que eles foram apagados no Brasil. Junto com o silêncio esse apagamento de memória também destrói tudo que você pode chegar lá e trazer.

Mas eu tinha sempre a certeza que eu precisava reconstruir esse espaço como um ato de resistência cinematográfica. Dois: preocupava-me muito a reação dessas mulheres, o quanto elas estavam preparadas para entrar ali, que de certa maneira, eu pouco entrei na torre, eu ficava do lado de fora, nos monitores olhando, eu pouco interagi com elas lá dentro. Então tudo que acontece lá é muito que elas decidiram fazer e a reação que elas tiveram.

Eu tinha dois psicanalistas da Clínica do Testemunho, que foi muito importante para mim, que são pessoas que trabalharam com pessoas que foram lá. Então eu tinha essas pessoas do meu lado o tempo todo acompanhando e curiosamente essas pessoas nunca foram solicitadas por essas mulheres. Essas pessoas foram solicitadas uma única vez, quando a Alice Caymmi, neta do Dorival Caymmi, entra para cantar a música de despedida (Suíte do Pescador), e ela não aguenta de emoção. A família não sabia que essa música é uma música tão importante para os presos políticos, e ela fica muito emocionada e a gente chama um dos psicanalistas, e as mulheres estão ali também socorrendo a Alice.

"Tudo que acontece lá é muito que elas decidiram fazer e a reação que elas tiveram" | Foto: Fabiana Reinholz 

É muito interessante, porque eu acho que elas estavam, quando entram na Torre, com uma vontade, um dever cívico de contar, e elas estavam muito fortes. Mas de qualquer maneira eu tomei essa precaução de ter essas pessoas ao lado, e elas estavam durante todo o tempo de filmagem, conversando com elas, muitas nem sabiam que tinha psicanalista da Clínica do Testemunho ali entre elas. Tivemos esse cuidado de não provocar uma emoção até porque são mulheres, a Dulce Maia, que é a primeira mulher que entra na Torre, tinha acabado de sair do hospital, o médico falou você não deve fazer nada, ela falou eu preciso fazer isso, logo depois ela faleceu. Então foi como um dever cívico dela, e todas estavam muito imbuídas nesse sentimento, e por isso foi muito forte. Teve uma delas que por acaso morava perto da cela que eu construí, e falou assim: “à noite tem alguém aqui?”; eu falei “não”. Ela falou assim “se eu quisesse vir dormir aqui à noite eu poderia?”, eu olhei, “por que você quer vir dormir aqui?”, ela falou “porque quando eu entrei eu recuperei sonhos, esperanças, tudo aquilo que eu tinha naquela época”. É muito louco você ouvir isso de uma pessoa, mas é um momento da vida, que é um momento de muita dor, mas que tinha muita esperança, e tinha muita vontade de mudar o mundo, e as pessoas vão perdendo, ao longo da vida, a vida vai tirando isso, e ela queria voltar para esse lugar. Esse lugar da memória dela, que estava ali representado naquele espaço. Eu achei muito interessante isso e ao mesmo tempo meio assustador também, mas enfim, cada um tem seu gatilho.

BdF RS - Tu já comentasses que levou o filme para o Chile, Equador queria que tu falasse aonde mais está indo com o filme, como está sendo a recepção nos outros países.

Susanna - Eu não consigo dizer agora todos os países que fomos, mas fomos para muitos países latino-americanos, ficamos em cartaz no México, na Cinemateca mexicana, fomos para vários países europeus, fomos para o Líbano. E foi muito interessante que a gente exibiu para uma plateia libanesa, de mulheres libanesas, eu falei gente elas não vão entender nada, porque a história é completamente diferente. Quando terminou a exibição, as perguntas que elas faziam sobre as prisões subjetivas das mulheres eram muito interessante. Eu falei “gente é uma religião, não tem nada a ver”, e elas compreenderam o filme, se emocionaram muito e falaram sobre essas prisões que a gente precisa quebrar e principalmente sobre as lições de sororidade do filme. Eu acho que ali, para elas foi um grande despertar, sobre olhar para uma outra mulher de uma outra forma. Cada lugar que o filme passa, ele tem um entendimento diferente de acordo com a cultura, alguns países falam, por que vocês deixaram isso acontecer de novo? São respostas que a gente não tem, mas a gente segue em cartaz no cinema em cinco cidades, logo vamos estar no canal GNT da Globosat, que é um co-produtor do filme, e no Canal Brasil. Então as pessoas que não tiveram acesso ao cinema vão poder ver.

BdF RS (Télia) - Sempre que assisti depoimentos de pessoas que passaram por situação de tortura, muitos depoimentos que a presidenta Dilma deu ao longo dos anos que eu estive com ela, me emocionaram muito, não tinha uma vez que eu não chorasse ao ouvir aquele depoimento, e acho que é um pouco diferente de você ver depois quando está na tela. Você dali, de onde você esteve durante a gravação desse filme, em algum momento chorou?

Susanna - Chorei muitas vezes e choro em todas as exibições do filme, evito agora assistir, de vez em quando eu não assisto, eu entro, apresento o filme e saio, principalmente pela qualidade do filme. Claro que tem uma dor delas que é muito profunda, e saber que a gente está vivendo uma coisa parecida, que a gente possa a vir a viver isso. Então chorei na época da filmagem, na montagem, porque na montagem é o momento que você entra muito em contato com a emoção, você mergulha naquele material. Nas exibições até hoje, não tem como eu assistir o filme e sair dele achando que já sei tudo. Cada vez me desperta um outro lugar. Cada vez a atualidade do filme me deixa mais tocada. Ao mesmo tempo é uma tristeza que me fortalece por um lado, que elas são tão fortes, que nos convoca à luta. É uma tristeza, mas que tem uma inquietude, uma vontade de fazer o mesmo e de reproduzir de alguma forma essa lição que elas passaram pra gente.

"Cada vez a atualidade do filme me deixa mais tocada" | Foto: Fabiana Reinholz 

Edição: Marcelo Ferreira