Grandes manifestações e resultados eleitorais impactam cenário político
As mega manifestações no Chile, que derrubaram o estado de sítio e o ministério de Sebastián Piñera ou a vitória de Alberto Fernández e Cristina Kirchner na Argentina? Ou ainda a resistência do povo equatoriano ou as vitórias de Evo Morales na Bolívia? Ou o resultado de Daniel Martínez, da Frente Ampla, no primeiro turno do Uruguai? Enfim, quais os maiores golpes que estão pondo em chamas o neorreacionarismo e neoliberalismo na América Latina?
As grandes manifestações que vem ocorrendo no Chile, Equador, Haiti e os resultados eleitorais na Argentina, Uruguai e Bolívia estão impactando o cenário político da América Latina e Caribe. As condições políticas e econômicas de uma economia periférica e subordinada, como a dos países latinoamericanos, não permitem supor um quadro de estabilidade e dinamismo próprio e sustentável dessas economias. Suas condições periféricas as fazem altamente dependentes da economia global e as políticas macroeconômicas de seus governos são decisivas para o caminho que vão trilhar, se pelo caminho da subordinação ou pelo da autonomia.
Essa é a explicação para que em muito poucos anos os governos ortodoxos de orientação neoliberal que aplicam políticas de “austeridade” - como Macri na Argentina, Piñera no Chile, Moreno do Equador e a parelha Temer/Bolsonaro no Brasil - tenham jogado a economia da região em uma crise profunda, com todas as consequências possíveis. A economia parou, as taxas de crescimento não sustentam a incorporação de novas ondas de trabalhadores ao mercado, pelo contrário os expurgam. Os sistemas públicos de seguridade social, como saúde e previdência, foram desmanchados e seu capital amealhado pelo mercado, uma forma indireta, mas volumosa de transferência da renda dos trabalhadores para o mercado financeiro.
A perspectiva para a economia do continente é trágica. As previsões responsáveis falam de desaceleração do crescimento econômico diante da diminuição dos investimentos. A Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) previu, em seu “Estudo Econômico” de julho deste ano, uma taxa de crescimento de apenas 0,5%. Na verdade se fragmentarmos o estudo, a CEPAL previu um crescimento de míseros 0,2% para a América do Sul. A atualização dos indicadores, porém, demonstra que a América do Sul tende a ter uma taxa negativa de crescimento no ano. Os efeitos sobre a situação social são brutais. Depois de uma queda no contingente de pessoas em situação de extrema pobreza, entre 2000 e 2010, o quadro é de aumento, nos últimos 3 anos, de 57 milhões para 62 milhões. A velocidade de redução da desigualdade nos 18 países da América Latina e do Caribe diminuiu nesta década. De 2002 a 2008 a diminuição média do índice estava em 1,3% por ano; já entre 2008 e 2014 esteve em 0,8% ao ano e passou para 0,3% ao ano de 2014 a 2017.
No Brasil, em especial, o resultado dessas políticas de austeridade ampliaram a concentração de renda. Segundo o estudo ‘FGV Social”, do fim de 2014 a junho deste ano, a renda per capita do trabalho dos 10% mais ricos subiu 2,5% acima da inflação e a dos 1% mais ricos foi 10,1%. Já o rendimento dos 50% mais pobres despencou 17,1% e da camada de 40% "do meio" - a classe média base da virada neoliberal no país - caiu 4,2%.
Reconhecendo-se, com racionalidade e sinceridade, o que ocorre na economia do Continente não poderíamos imaginar que esse impressionante contingente de vítimas dessas políticas sucumbisse na paz perpétua dos cemitérios, permanecesse ad aeternun na passividade.
A reação popular indica um esgotamento da tolerância das classes trabalhadoras com tamanha crise e com a ampliação das políticas de austeridade, como a eliminação da capacidade protetiva da legislação trabalhista, a redução dos benefícios previdenciários, a estrutura tributária regressiva que se assenta nos trabalhadores e poupa os ricos e rentistas e o incentivo à especulação financeira. As políticas que transferem renda dos trabalhadores em favor do mercado financeiro em detrimento dos investimentos públicos na economia e infraestrutura, estão desnudadas pela reação popular.
Essa reação terá que construir uma estratégia de mudanças políticas que invertam o sentido das políticas dos governos nacionais no Continente ou também sucumbirá. Essa estratégia passa por políticas e governos de recuperação fiscal com base na tributação sobre as classes sociais que se beneficiam pelos privilégios tributários e cometem ilícitos nos fluxos financeiros da região, além de medidas de recuperação dos investimentos em infraestrutura e proteção social, tais como garantia de renda mínima, saúde universal, ampliação de emprego e cobertura previdenciária.
O futuro e as consequência da reação dos trabalhadores na América do Sul ainda estão em aberto e contra ela ainda remanescem forças políticas e econômicas poderosas. A pressão do capital financeiro sobre a economia regional e a base local que se beneficia dessa política ultraneoliberal ainda são potentes e reúnem muitos requisitos para manter o controle dos governos. As eleições que ocorreram e ainda ocorrerão no Continente no próximo período aumentaram a pressão sobre esses governos austericidas e reacionários. A vitória de López Obrador no México foi a primeira a sinalizar a rejeição às políticas austericidas. Agora, as vitórias de Evo Morales na Bolívia, da “Frente de Todos” na Argentina somadas ao bom desempenho da Frente Ampla no primeiro turno do Uruguai, fatalmente aumentarão a pressão por mudanças na orientação neoliberal hegemônica na América Latina.
O quadro no Brasil ainda é mais confuso. A ascensão da aliança entre o neoliberalismo e o neorreacionarismo é recente e o impacto de seu naufrágio político, justamente por ser o país a maior economia da região, seria fatal para a direita latino-americana. As aprovações das reformas trabalhista e previdenciária foram importantes para o rentismo por razões econômicas, por óbvio, mas também porque, no campo da política, mantém aglutinada parte importante da base da direita e do rentismo, condição fundamental para a sustentação do governo neorreacionário de Bolsonaro. Contudo, os efeitos dessas medidas, somada à extinção dos investimentos em políticas sociais, já são concretos nas condições de vida dos trabalhadores e poderão desestabilizar esse bloco. As eleições municipais de 2020, a luta pela liberdade do Presidente Lula e o desmascaramento da Operação Lava Jato, fatalmente indicarão a correlação de forças do próximo período.
Obviamente que as agências de mercado do mundo capitalista e seu principal governo, o dos EUA, não estão contentes com a possibilidade de uma nova “virada à esquerda” no Continente e não admitirão que ela aconteça sem se opor. Se suas políticas para a região, aplicadas pelos governos reacionários e conservadores, por si só não tem capacidade de estabilização de seus interesses, fatalmente baseados no histórico dos últimos 50 anos - como disse Rodolfo Nin Novoa chanceler do Uruguai - podemos imaginar que os EUA aprofundarão sua política de desestabilização da democracia e das organizações populares na América Latina.
O fato é que o governo de Piñera no Chile está acuado, seu gabinete de ministros desmanchou com a renúncia coletiva, Macri perdeu as eleições na Argentina, Bolívia reafirmou sua rejeição às políticas pró-mercado, Uruguai vai pelo mesmo caminho, o povo haitiano reage aos anos de miséria e intervencionismo estrangeiro e o Brasil é uma bomba-relógio. As políticas austericidas ardem em chamas na América Latina e Caribe. Resta saber se, também e quando, seus governos arderão.
Edição: Katia Marko