Rio Grande do Sul

POVOS ORIGINÁRIOS

VII ENEI destaca a importância da formação política indígena na luta por direitos

Cerca de 400 estudantes indígenas de todo o país se reuniram em Porto Alegre nesta semana para debater o cenário atual

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Além de mesas de debate, indígenas realizaram ato político pelas ruas da capital gaúcha
Além de mesas de debate, indígenas realizaram ato político pelas ruas da capital gaúcha - Foto: Divulgação VII ENEI UFRGS

O Brasil tem aproximadamente mais de 56 mil estudantes indígenas no ensino superior, distribuídos por todo o país. Mas os cortes e a inviabilidade de recursos dificultam a permanência desses estudantes. As políticas indígenas de educação e o desmonte da escola à universidade foram alguns dos temas trabalhados no VII Encontro Nacional de Estudantes Indígenas (ENEI), que esse ano teve o tema “Direitos Indígenas em perspectiva: das políticas indigenistas de Estado ao estado das políticas indigenistas”.

Durante quatro dias (21 a 24 de outubro), universitários indígenas, graduados, pós-graduados, assim como lideranças indígenas de todo o país, se reuniram na Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ESEFID UFRGS) para debater o contexto atual. O VII ENEI debateu temas como os Direitos Originários dos Povos Indígenas entre a cerca e o asfalto; Políticas de Saúde entre Equidade e Assimetria de poder; Epistemologia da Terra: os Território Indígena são milenarmente Agroecológico?; e Mulheres Indígenas: fortalecimento das teias do Cuidado a proteção no território e Espírito.

Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas foi realizado na UFRGS | Foto: Douglas Freitas 

Segundo o último Censo da Educação Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), de 2017, há 56,7 mil indígenas matriculados no ensino superior do país, número que representa 0,68% do total de 8,3 milhões de estudantes matriculados. A maioria dos indígenas (42,8 mil) está matriculada em instituições particulares de ensino superior. Mesmo como crescimento do ingresso, os cortes de verbas e os retrocesso das políticas de ações afirmativas, advindas por exemplo das cotas, dificultam a permanência dos estudantes.

De acordo com o coordenador geral do encontro, Douglas Jacinto Rosa, da etnia Kaingang, gestor ambiental e mestrando em antropologia social da UFRGS, o evento reuniu estudantes do Brasil inteiro para socializar pesquisas, as experiências e as estratégias, uma vez que, como aponta, regionalmente cada povo tem experimentos e diferentes formas de resistência diante dos distintos ataques aos direitos indígenas.

“É o contexto de maior ataque deliberado, sem qualquer tipo de camuflagem. É um ataque deliberado à política de educação pública de um modo geral e, obviamente, acaba impactando também os estudantes indígenas”, afirma. Conforme relata Douglas, os estudantes indígenas são a menor parcela que está acessando atualmente o ensino superior e se tornam extremamente fragilizados com os ataques à educação, o que acaba afetando as especificidades dos povos indígenas na sua experiência de ensino superior.

Formada em licenciatura Intercultural Indígena pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com ênfase em direitos indígenas, Ana Patté, da etnia Xokleng, de Santa Catarina e atualmente assessora da deputada estadual Isa Penna (PSOL-SP), ressalta que a presença dos indígenas dentro da universidade é fundamental. Contudo, a permanência depende de verba, uma vez que não existem políticas públicas específicas para os povos indígenas nas universidades. Ana integra também o Comitê Indígena de Mudanças Climáticas.

Ana Patté, da etnia Xokleng, de Santa Catarina | Foto: Fabiana Reinholz 

“Se tem corte de verbas, os primeiros a serem afetados são os indígenas, que são bolsistas, que dependem daquela estrutura e das bolsas para sobreviver dentro da universidade. A gente vem de uma realidade diferente, de estudos diferentes, não tem pais ricos que podem nos sustentar, e o único recurso que a gente ganha são as bolsas de permanência, de extensão. Então os primeiros a serem atacados são esses que dependem dessas bolsas”, afirma.

O estudante de agronomia da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), de Aquidauana, e representante dos estudantes indígenas na universidade, Tauan Corrêa Gonçalves, da etnia Terena, conta que sua aldeia fica a 23 quilômetros da cidade. A universidade fica a doze quilômetros da cidade. Juntando os dois, são 35 quilômetros. A falta de uma linha de ônibus dentro da cidade faz com que se tenha que desembolsar o valor de R$ 180,00 mensais para ir para a universidade, e o ônibus não tem como passar dentro da aldeia. Além disso, a bolsa de R$ 400,00 e a falta de infraestrutura faz com que muitos acabem saindo da universidade.

Tauan Corrêa Gonçalves, da etnia Terena, de Mato Grosso do Sul | Foto: Fabiana Reinholz 

“A maioria dos estudantes da aldeia dão um jeito de viver na cidade e, ao mesmo tempo, pagar o transporte. Com a bolsa que nos é oferecida, a gente já gasta com moradia, alimentação, água, luz, transporte e internet, já que dentro da da própria universidade não é disponibilizada internet. Estamos na luta para conseguir uma moradia indígena dentro da cidade, ou mesmo dentro da universidade, para nos ajudar. A maioria dos indígenas que entram dentro da UEMS acabam saindo por essas dificuldades, porque os pais não tem como pagar, já que eles são pequenos agricultores e vivem de subsistências na maioria das vezes”, relata.

Telma Marques da Silva, da etnia Taurepang, do Estado de Roraima, é mãe de três filhos, que já foi cacique da sua comunidade e, atualmente, está na coordenação geral da União das Mulheres Indígenas na Amazônia brasileira. Ela se sente privilegiada em participar do encontro: “Nos traz uma existência muito grande, que de fato é uma existência para resistir a essa grande demanda que surge dentro das nossas universidades federais, tendo em vista que houve antes uma luta muito grande das nossas lideranças para que esse espaço fosse hoje ocupado por essa geração acadêmica que está se formando. Temos indígenas se formado como advogados médicos, professores”.

Telma Marques da Silva, da etnia Taurepang, de Roraima | Foto: Fabiana Reinholz 

De acordo com ela, o contexto é de resistência dos povos indígena em seus territórios diante de um governo capitalista que não pensa em outra coisa a não ser em um desenvolvimento que acaba sendo genocida para os povos indígenas. Ela critica a exploração dentro da terra indígena de mineração, de petróleo ou barragens, que atingem diretamente os povos. “Nossa luta é sempre estar nessa resistência perante esse governo que não respeita os povos, que não respeita a Constituição de 88, os artigos 231 e 232, feita com a voz de muitas lideranças”, conclui.

Ato político centro de Porto Alegre 

Ato político dos estudantes indígenas no centro de Porto Alegre | Foto: Roberto Liebgott/CIMI

Além das mesas de debate, os indígenas realizaram uma caminha colorindo de urucum o centro da cidade, levando às ruas da capital gaúcha as pautas fundamentais à existência dos povos indígenas, assim como as políticas de permanência no ensino superior e dos direitos originários dos povos indígenas e quilombolas.

“Levamos para a rua a denúncia dos nossos direitos, que são todos os dias retirados, a defesa da Amazônia, o que vem acontecendo com ela, da sua diversidade que está em risco. Falamos também sobre a questão do genocídio, que é muito grande, dos povos indígenas e das populações tradicionais”, relata Alice Martins, mulher indígena Guarani em contexto urbano graduanda do curso de pedagogia da Universidades Federal de Pelotas (UFPEL).

Alice ressalta que a luta indígena é pela preservação de seu modo de vida e existência. “As pessoas não conseguem compreender isso porque tanto o governo como outras pessoas defendem que nós temos que nos integrar à sociedade branca da forma como eles querem, e se isso vem a acontecer será o nosso fim”, destaca.

Alice (à direita) ao lado de companheiras indígenas durante ato político | Foto: Divulgação 

Ainda segundo Alice, a caminhada serviu para demonstrar que, 519 anos depois, a população indígena está dentro da universidade. “Estamos dentro dessa estrutura completamente patriarcal, branca, e exigimos respeito. Apesar de termos um processo seletivo para estudantes indígenas, não temos a garantia desse estudante indígena estar dentro dessa universidade”, conta.

Apesar das dificuldades de recursos, o encontro conseguiu reunir, de acordo com Alice, 303 etnias de todo o país, que estiveram presentes para mostrar ao governo e à sociedade que o povo indígena está unido na luta. “Estamos unidos e caminhamos juntos, e não queremos mais ser instrumento para ser usado quando está dentro da academia, queremos que respeitem nosso modo de vida, esse foi o grito desse ato político”, conclui.

Além da caminhada, a atividade contou com um debate sobre a demarcação de terras indígenas, organizado pelo Jornal da Universidade e Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados (ILEA/UFRGS), com os debatedores Ana Patte, o procurador do Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul, Paulo Leivas, o professor do departamento de Antropologia da UFRGS, José Otávio Catafesto e Telma Taurepang.

Edição: Marcelo Ferreira