A ameaça de patrolamento do atual Código Estadual do Meio Ambiente através da alteração de 480 de seus artigos e com votação em regime de urgência pela Assembleia Legislativa deixou os ambientalistas gaúchos em pé de guerra contra o governo Eduardo Leite (PSDB). “É um projeto desestruturante, destruidor e prostituinte, porque ele prostitui a questão ambiental numa liberalização infundada que destrói 10 anos de trabalho”, ataca o presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), Francisco Milanez, tachando a proposta de um retrocesso de 40 anos.
O projeto do novo Código Ambiental para o Rio Grande do Sul foi apresentado oficialmente dia 27 de setembro pelo governador Eduardo Leite e pelo secretário do Meio Ambiente e Infraestrutura, Artur Lemos Júnior, no Palácio Piratini.
“É lamentável”, reage o ex-secretário de Meio Ambiente de Porto Alegre e ex-vereador pelo PP, Beto Moesch, referindo-se à proposta de votação em toque de caixa de algo tão importante. Ex-presidente da Agapan, Celso Marques afirma que Leite “quer desmontar em 30 dias o que levou vários anos para ser construído”. Marques, hoje convertido ao budismo como monge Seikaku, nota que a discussão sobre a legislação atual foi trabalhosa e detalhada. Começou em 1992 e o projeto somente foi votado e aprovado em 2000 pelo Legislativo.
Sem consulta
“Agora, não houve consulta à sociedade nem mesmo aos próprios técnicos da Fepam (Fundação Estadual de Proteção Ambiental). É uma proposta leviana e precipitada. Deixa fazer o que (os empresários) quiserem”, retorna Milanez. Aliás, um grupo de técnicos da Fepam realizou uma varredura no projeto de Leite, produzindo uma nota técnica de nove páginas (veja alguns de seus pontos nesta edição) que elenca o que considera seus maiores equívocos. “A nota mostra a desqualificação das pessoas que fizeram o (novo)projeto, seus abusos e liberalidades”, opina o presidente da Agapan.
“Vai ser preciso pressão da sociedade”. É o remédio que Moesch recomenda para travar a urgência da votação. “E também da imprensa porque as pessoas têm que saber disso”, agrega. Nos anos 1990, Moesch foi convidado pela Assembleia Legislativa para atuar na mediação dos debates em torno do rascunho da lei hoje em vigor. Lembra que, na época, sentaram-se à mesa para discutí-lo desde as federações empresariais até as ONGs ambientalistas, passando por órgãos públicos, universidades e municípios. A legislação somente foi aprovada, por unanimidade e sem emendas, em 2000, após atingir um consenso capaz de satisfazer a todos os envolvidos.
O Estado se retira
“Temos que unir forças, apesar das nossas divisões, para barrar o regime de urgência na Assembleia”, receita Milanez. “Demonstrar a irresponsabilidade que é isso (o código e a pressa em aprová-lo). Marques acha que a proposta só se preocupa com a rapidez do licenciamento e dá até a possibilidade do autolicenciamento, ficando a fiscalização para depois. Moesch nota que na Bahia já existe algo semelhante, mas apenas para instalação de postos de combustível. E em Santa Catarina vale somente para o setor de avicultura. Aqui, ainda não foi definida a abrangência.
Para Milanez, o autolicenciamento significa o Estado se retirando de sua função de controlar. “Quer ficar só com a parte boa, a de multar. E o empresário vai cair na mão das empresas de consultoria que, na hora H, vão cair fora...”, prevê.
Caminho inverso
Ele considera irônico que, justamente o Rio Grande do Sul, pioneiro na luta ambiental no Brasil, primeiro com Henrique Roessler nos anos 1950 e depois com José Lutzenberger e a Agapan nos anos 1970, enverede pelo caminho inverso. “Essa luta gerou o primeiro órgão ambiental municipal, o primeiro estadual, o primeiro mestrado de Ecologia numa universidade, que foi a UFRGS, a primeira lei de agrotóxicos, uma Constituição, a do RS, muito voltada para a questão ambiental”, enumera. “E agora o Estado abandona a razão e se alia a uma especulação estúpida”, acusa.
Governo acha que novo código representará “maior proteção”
Para o governo estadual, o projeto do novo código significa “um melhor equilíbrio entre a proteção ambiental e o desenvolvimento socioeconômico”. Apesar da torrente de críticas, o Palácio Piratini trata a proposta como uma “modernização” das leis que protegem o ambiente natural. Chega a afirmar que a inovação irá assegurar “maior proteção ao meio ambiente”. Também proporcionará “mais segurança jurídica e embasamento técnico”, além de “incentivar a participação da sociedade e estar alinhado com a legislação federal”.
Quanto à controversa Licença Ambiental por Compromisso (LAC), nota oficial sustenta que poderá ser solicitada por “empreendimentos considerados de menor impacto”. Seu argumento é de que simplificará o processo de licenciamento das atividades definidas como de baixa repercussão ambiental.
Análise: Eduardo Leite tenta fantasiar de “novo” aquilo que é velho e atrasado
“Uma tentativa de travestir de 'moderno' um código que retrocede e precariza não somente o licenciamento, mas tudo o que se refere à garantia dos valores ambientais”. Assim a nota técnica elaborada por um grupo de funcionários da Fepam, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental, retrata as transformações pretendidas pelo governo Eduardo Leite (PSDB) no Código Estadual de Meio Ambiente. Com nove páginas, o documento é uma leitura técnica e detalhada das mudanças pretendidas. Além de questionar alterações substanciais, ataca a quantidade de erros, confusões de conceitos e imprecisões do projeto.
Veja algumas das críticas ao projeto
1 - Acaba com os quatro artigos do capítulo 5. Os quatro tratam de medidas de proteção, por exemplo, às áreas adjacentes às unidades de conservação. Também deixa de proteger áreas reconhecidas pela UNESCO como reservas da biosfera; os bens tombados pelo Poder Público; as ilhas fluviais e lacustres; as fontes hidrominerais; as áreas de interesse ecológico, cultural, turístico e científico, os estuários, as lagunas, os banhados e a planície costeira; as áreas de formação vegetal defensivas à erosão de encostas ou de ambientes de grande circulação biológica.
2 - Revogação total do capítulo que trata da educação ambiental. Acaba com a participação do Estado em eventos, capacitação de recursos humanos em conscientização ambiental, e divulgação, por meio de planos, pesquisas e projetos.
3 - Revoga todo o segundo capítulo do código atual, aquele referente aos estímulos destinados à proteção ambiental. “Foram suprimidos todos os mecanismos de apoio financeiro do Estado, até mesmo para as pesquisas e centros de pesquisas, manutenção de ecossistemas, racionalização do aproveitamento da água e energia, entre outras tantas”, assinala.
4 - Afrouxa o licenciamento ambiental, criando grave risco ambiental. É o que acontecerá com a criação da LAC, sigla que identifica a “Licença por Adesão de Compromisso”. Ou seja, “o empreendedor pode iniciar a instalação e a operação baseadas apenas numa declaração”. É, na prática, o autolicenciamento.
5 - Supressão total do capítulo sobre poluição sonora. No tocante à poluição visual, permite a exploração de paisagens com anúncios públicos, painéis luminosos, ou qualquer tipo de comunicação.
6 - Já o artigo 56 do projeto é, para os analistas, “uma terceirização disfarçada”. Permite contratar pessoas físicas ou jurídicas para cumprir prazos para emissão de licenças, ocupando a atividade-fim da Fepam e desconsiderando o instrumento do concurso público.
7 - Desmonta o Código Florestal/RS. Revogam-se vários artigos que protegem as florestas e espécimes importantes da flora gaúcha. Entre eles, os que citam a proibição da coleta, o comércio e o transporte de plantas ornamentais oriundas de florestas nativas.Também cai a proibição da coleta, a industrialização, o comércio e o transporte do xaxim. Retira-se a proibição “da supressão parcial ou total das matas ciliares e das vegetações de preservação”.
8 - Abre caminho para os incêndios florestais ao riscar o artigo 28, aquele que proíbe o uso do fogo ou queimadas nas florestas e demais formas de vegetação natural. Também elimina o artigo 1º que reconhece as florestas nativas e demais formas de vegetação natural como bens de interesse comum.
9 - Retira o veto ao corte de árvores, comercialização e venda de florestas nativas, “numa sucessão de equívocos e desconhecimento”.
10 - Revoga o artigo 35 do código florestal, aquele que proibia ou limitava o corte das espécies vegetais em via de extinção.
“Não se pode votar assim, sem discussão”
“Claro que o governo tem toda legitimidade para promover uma revisão do código, mas o que não se pode é votar assim, sem discussão”, pondera o deputado estadual Zé Nunes (PT). Para ele, não é possível aprovar algo tão complexo, uma lei com alterações em 480 artigos, em apenas um mês. Nunes comenta que praticamente metade da Assembleia Legislativa é composta por deputados de primeiro mandato que somente agora estão tomando conhecimento do tema que é bastante técnico.
“É preciso avaliar, artigo por artigo”, acentua. “Mas podemos ser objetivos”, diz. Ele entende que, se o Executivo quiser poderá definir, por exemplo, dois ou três meses para debate do assunto no Legislativo com os diversos setores da sociedade e, findo o prazo, ingressar com o regime de urgência. “Seria o racional e o correto”, avalia. Zé Nunes acredita que haverá condições de se construir um acordo a respeito.
Audiência pública
A Agapan afirma que o atual Código Ambiental do RS já é muito bom, apenas precisa ser colocado em prática. A fim de debater as mudanças propostas e alertar sobre a necessidade de maior tempo para que o projeto vá a votação em plenário, uma audiência pública acontece na próxima segunda-feira (21), às 17h, no Teatro Dante Barone da Assembleia Legislativa.
*Colaborou Wálmaro Paz
Edição: Marcelo Ferreira