O Brasil é o terceiro maior produtor de leite do mundo e tem como um dos maiores produtores o estado gaúcho. Contudo, a concentração da produção em grandes empresas dificulta a produção dos pequenos produtores. Além disso, outras ameaças rondam a produção, como as novas regras do governo federal, através das Normativas 76 e 77, e a desvalorização do preço do leite pago ao produtor. A crise atual do setor fez com que produtores realizassem mobilizações no centro da capital gaúcha e também debatessem o tema em audiência pública, no auditório Dante Barone da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, na manha dessa terça-feira (15).
Realizado pelas comissões de Agricultura e de Segurança e Serviços Públicos, diante da proposição dos deputados estaduais Edegar Pretto, Zé Nunes e Jeferson Fernandes, do PT; Elton Weber (PSB) e Edson Brum (MDB), o evento reuniu agricultores oriundos de todas as regiões do Estado. Contou também com a presença de prefeitos, vereadores, e demais representantes de instituições públicas e entidades, inclusive do Paraná, Espírito Santo e Minas Gerais.
Antes da audiência, os produtores realizaram mobilizações no centro da capital, sendo a primeira um protesto no pátio da Superintendência Regional do Ministério da Agricultura (Mapa). Em seguida, os produtores fizeram uma caminhada com faixas, cartazes e duas vacas até a Assembleia Legislativa. O objetivo foi chamar a atenção para a atual realidade do setor no Estado.
Entre as reivindicações, os agricultores pedem a extinção de normativas do governo federal que prejudicam a produção de leite aos pequenos produtores, melhor preço pago pela indústria ao produtor, melhoria nas estradas e também o envolvimento do governo do Estado para buscar soluções aos problemas oriundos da crise do leite.
Novas regras preocupam
Publicadas em novembro de 2018 pelo Ministério da Agricultura, as novas regras para a produção de leite se dão por meio das Normativas 76 e 77, que especificam os padrões de qualidade e identidade do leite cru refrigerado, do pasteurizado e do tipo A. Entre as alterações, a mais significativa e que impacta diretamente os produtores diz respeito à temperatura máxima permitida para o leite chegar ao estabelecimento industrial. Pela nova regra, a temperatura que antes era de 10 graus passa para 7 graus. De acordo com os produtores, essa mudança ignora a realidade daqueles que moram em locais muito distantes e o tempo de viagem necessário para transportar a matéria-prima até a indústria.
Presente na audiência pública, Leonardo Isolan, chefe da Divisão de Defesa Agropecuária do Mapa, explicou que o Ministério abriu consulta pública em junho do ano de 2018, onde foram recebidas 420 sugestões em 60 dias de consulta. De acordo com ele, todas as propostas foram analisadas de forma individual e com a atenção merecida. A norma foi publicada em 30 de novembro de 2018, com o prazo de 180 dias para adequações, e entrou em vigor em 30 de maio de 2019. “Não podemos deixar de citar as vantagens que ela traz. Está sendo buscado a qualificação do produtor, é uma norma que pensa na inclusão”, defendeu.
Contudo, de acordo com os trabalhadores, a medida exclui milhares de pequenos e médios produtores da atividade. “Essa normativa vem para prejudicar, ela exige a temperatura ideal que a gente sabe que não tem condições de chegar, tem questões que independem das nossas mãos, que são as estradas, a questão da energia elétrica. O caminhão não consegue manter a temperatura nos padrões exigidos e esse leite vai ser condenado, jogado fora, e isso vai prejudicar o produtor, a cooperativa e o município”, sentencia Rosi de Lima, do assentamento nossa Senhora da Conceição, de Santana do Livramento, na Fronteira Oeste.
De acordo com ela, na cooperativa Cooperforte, existente desde 2002, e da qual ela faz parte, cerca de 400 famílias produzem em torno de 600 mil litros de leite mês. “Tu imagina quantas famílias vão ficar sem atividade, o leite além de ser um produto sagrado, que é o primeiro alimento que todo ser humano toma, também mantém as famílias com uma renda mensal. É uma atividade muito importante, o que vai ser das famílias se não puderem mais vender a sua produção?”, questiona. Segundo ela, o governo que libera centenas de agrotóxicos é o mesmo que vê perigo em 10 graus. “Não vamos morrer tomando leite a 10 graus, mas morrer envenenados”, conclui.
No assentamento Piratini, Adelar Pretto relata que há 50 famílias com uma produção de 30 mil litros por dia. Ele ressalta que, somando a produção em todos os assentamentos do MST, se chega a uma produção de mais de dois milhões. “Viemos desde manhã cedo denunciando essa portaria que diz que o leite não pode chegar acima de sete graus. Durante o verão, por exemplo, o caminhão não chega ao destino final com sete graus. Isso que é exigido aqui não é exigido em nenhum lugar do mundo. Isso é para tentar excluir o pequeno agricultor da atividade. Queremos que ela seja suspensa”, afirma. De acordo com ele, a intenção é entregar ao governador um documento apresentando as reivindicações. “O governador não pode ficar de braços cruzados diante dessa crise”, ressalta.
Situação beneficia grandes empresas
De acordo com o deputado estadual Edegar Pretto, muitos pequenos agricultores abandonaram outras culturas para investir na produção do leite, com a compra de vacas e equipamentos. Com as normativas e o preço que vem algum tempo penalizando os produtores, segundo dados da EMATER, só no Estado, mais de quinze mil famílias serão excluídas da atividade. “O que nós estamos percebendo é que o governo vai excluir milhares e vai concentrar em poucos a produção do leite como já aconteceu em outras culturas”, aponta.
Renato Coimbra, secretário da Associação das Pequenas Indústrias de Leite (Apil), complementa dizendo que a estimativa é que, até dezembro de 2019, em torno de 23% dos produtores que entregam leite para pequenas indústrias de laticínios no RS abandarão a atividade. Outro problema que preocupa os produtores é o preço do litro do leite pago pela indústria ao agricultor. A média, conforme valor de referência, é de R$ 1,00, quase igual ao valor do custo de produção. Ou seja, praticamente os produtores pagam para produzir e abandonam a atividade.
Cleonince Back, dirigente da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do RS (Fetraf-RS), explica que a atual conjuntura vivida pelos produtores, como instabilidade do preço pago aos produtores e também as instruções normativas, que vem exigir mais dos produtores familiares, impulsionou o pedido da audiência. Para exemplificar ela conta que há períodos que os produtores recebem entre R$ 0,80 e R$ 0,90 por litro de leite, sendo que o custo médio é R$ 1,20. “Quando há essa queda no preço, nós agricultores trabalhamos no negativo. Como produtora, quero dizer que não sou contra melhorar a qualidade da produção, mas precisamos de políticas de governo para ter condições de melhorar essa produção, desde a infraestrutura, até a melhoria nas estradas, na energia elétrica e outras políticas”, afirma.
Carlos Joel da Silva, presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag), chamou atenção para os acordos comerciais que afetam a competitividade “Temos o Mercosul, quanto de leite entra do Mercosul para cá? E também o acordo que está fechando com a União Europeia. O acordo com outros países têm mão dupla, podemos vender e podemos receber produtos de lá. E aqui a competitividade vai ser dura para nós, principalmente para o leite”, expõe. Joel destaca ainda que a competitividade, no caso nacional, é afetada pela carga tributária, más condições das estradas (qualidade do asfalto), qualidade da energia elétrica e o preço dos produtos que se tem que comprar para botar na atividade.
Ernesto Krug, diretor do Instituto Gaúcho do Leite (IGL), apresentou o levantamento da situação do setor e explicou que o cenário é de queda do preço do litro de leite pago ao produtor e de aumento do custo da produção. Para ele, as instruções são uma ameaça. Como sugestão, apontou a criação de um plano de aquisição regular e permanente, ao longo do ano, de lácteos da agricultura familiar e das cooperativas para os programas sociais do governo.
Já Aldair Muller, diretor da Federação das Associações de Municípios do RS (Famurs), frisou que a sua entidade é parceira para construir “uma política adequada para que a cadeia produtiva do leite possa continuar produzindo frutos e qualidade de vida aos agricultores”.
Ao final da audiência, uma comissão formada por deputados e representantes do Movimento Sem Terra (MST), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e Fetraf entregou uma carta com as principais reivindicações a Otomar Vivian, secretário-chefe da Casa Civil do governo do Estado. Os representantes dos movimentos explicaram ao secretário os principais problemas que enfrentam com as normativas e a questão do preço do leite. Cobraram urgência e medidas que atendam as reivindicações das famílias produtoras.
O deputado Edegar Pretto disse que o grupo representou cerca de 60 municípios gaúchos que participaram da audiência. Reivindicou que o governo não cruze os braços nessa hora e que o governador também levante a voz perante o governo federal para pedir o cancelamento das normativas. Em resposta, o chefe da Casa Civil informou que entregará pessoalmente o documento para avaliação do governador Eduardo Leite e do secretário da Agricultura do Estado, Covatti Filho (PP).
Veja aqui a cobertura completa da assembleia. Abaixo, confira a carta entregue ao governo:
CARTA ABERTA
PRODUTORES FAMILIARES DE LEITE PEDEM CONDIÇÕES PARA PRODUZIR
Produtores de leite ligados às organizações MST; FETAG, FETRAF RS, UNICAFES,MPA e cooperativas, reunidos em Audiência Pública na Assembleia Legislativa no dia 15 de outubro de 2019, para tratar sobre a crise do setor, resolvem divulgar a presente carta aberta para a sociedade e para os governantes. Os produtores familiares de leite do Rio Grande do Sul estão enfrentando dois problemas na sua atividade: o preço pago que não cobre os custos de produção e as Normativas 76 e 77 do Ministério da Agricultura. Estes fatores combinados estão levando a muitos produtores abandonarem a atividade leiteira. A EMATER fez em 2015 um levantamento sobre a cadeia do leite no RS, onde se verificou a existência de 85.000 propriedades produzindo leite entregue para indústrias e cooperativas. O mesmo levantamento repetido em 2017 verificou a redução para 65.000 propriedades. Estimativas indicam que hoje são em torno de 55.000 propriedades que produzem leite para venda. Em 4 anos, em torno de 30.000 propriedades abandonaram a produção de leite.
A atividade leiteira envolve grande número de pessoas e faz girar a economia dos municípios, principalmente os pequenos. A desistência da atividade acaba afetando toda a economia local e regional. Como exemplo, a Associação dos Municípios da Região Celeiro encomendou um estudo a EMATER sobre as perdas financeiras que os municípios registraram com a crise do leite no ano de 2017. O resumo do impacto econômico e social resultou numa perda de mais de R$ 125 milhões de reais e no abandono de mais de 500 famílias da atividade.
O preço pago ao produtor pelo litro de leite gira em torno de R$ 1,00. Porém o custo de produção chega a R$ 1,20 por litro. Assim o preço castiga aqueles produtores que investiram em tecnologia e desestimula o pequeno produtor a investir em melhorias.
O consumo de produtos lácteos vem caindo em razão da política econômica dos Governos Federal e Estadual. Junta-se ainda o abandono de políticas públicas de apoio ao setor, como compras de leite em pó por parte da CONAB para os programas sociais e de ajuda humanitária. As grandes empresas de lácteos que dominam o setor e não tem compromisso com a economia local e regional, aproveitam-se de toda esta situação e jogam os preços ainda mais para baixo, importando leite do Uruguai e da Argentina. De janeiro a junho deste ano, as importações aumentaram 18,3% comparado ao mesmo período do ano de 2018, conforme dados da SECEX. A Argentina vive uma brutal recessão econômica e com grande queda no consumo. A tendência é só aumentar a pressão para exportar leite para o Brasil. Como não vigora mais o regime de cotas de importação, não há limite.
A entrada em vigor das INs 76 e 77 – as duas instruções normativas passaram a valer a partir de junho deste ano. As exigências visam a melhoria da qualidade do leite, o que é positivo. Porém para que o pequeno produtor, pequenas indústrias e cooperativas o desafio é muito grande e exige investimentos em novos equipamentos. Outros gargalos como a qualidade da energia elétrica e as condições das estradas dependem das prefeituras e empresas fornecedoras de energia, há muito tempo cobradas. Rotas com muitos produtores e estradas em péssimas condições tornam muito difícil atender à exigência da Instrução Normativa 77, de o leite chegar na plataforma a 7ºC, quando antes era de 10º C. O resultado é inevitável: o descarte de muitos pequenos produtores, com enormes prejuízos econômicos e sociais para a economia dos municípios.
O Governo Federal aposta na exportação para os mercados da China e Egito. Não reeditou, conforme prometido, a sobretaxa de 14% para a importação de lácteos da União Europeia. O Programa de Aquisição de Alimentos praticamente não conta mais com recursos.
O Governo do Estado ainda não apresentou uma política para a cadeia do leite. Nada fez até agora para evitar o abandono de milhares de pequenos produtores da atividade do leite.
O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, a FETAG, a FETRAF, UNICAFES, MPA, Cooperativas apresentam a seguinte pauta de reivindicações para aliviar a grave crise que a cadeia do leite enfrenta:
Governo Federal
Imediata suspensão da vigência das INs 76 e 77 para a agricultura familiar, com a implantação de um conjunto de políticas de crédito, assistência técnica para agricultores e cooperativas, com vistas a se organizarem para enfrentar as exigências sanitárias destas instruções normativas;
Aquisição imediata de 30.000 toneladas de leite em pó da agricultura familiar via o Programa de Aquisição de Alimentos/CONAB;
Volta da sobretaxa de importação de 14% para o leite da União Europeia.
Monitoramento das importações, em conjunto com cooperativas e indústrias;
Governo do Estado
Assumir a pauta da defesa dos produtores de leite do Estado, intercedendo junto ao Governo Federal para a imediata suspensão das INs 76 e 77 e o estabelecimento de cotas de importação da Argentina;
Destinar recursos do FEAPER para compra de equipamentos;
Aumentar as compras institucionais de leite;
Campanha de valorização do leite gaúcho;
Destinar recursos para um programa de qualificação de energia no campo;
Montar um programa com recursos do Fundo Social do BNDES para as cooperativas e agroindústrias se adaptarem às novas exigências sanitárias;
Manutenção das estradas estaduais em boas condições.
Prefeituras Municipais
Manutenção das estradas em boas condições.
* Com informações de Catiana de Medeiros do MST
Edição: Marcelo Ferreira