“O golpe vem a galope“ foi a expressão que o autor de “Guerra Híbrida Contra o Brasil: Golpe ‘Legal’, a Prisão de Lula, Fascismo e Entreguismo” cunhou, ainda em meados de 2015, para uma audiência de assessores parlamentares da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, à época cética em relação às possibilidades de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. O cientista político Ilton Freitas, aliás, não se iludiu com as então sedutoras ‘jornadas de junho’ de 2013, que, amparadas na toada teórica de Manuel Castells, irradiariam indignação em redes e, logo depois, promoveriam barulhentas manifestações nas ruas, praças e espaços públicos sob os holofotes midiáticos.
O pesquisador associado ao Centro de Estudos Internacionais de Governos (CEGOV), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), esperou o tempo lhe dar razão. “Tragicamente assim sucedeu, e a flamante democracia brasileira tropeçou no golpe de estado de 2016 e resvala perigosamente para o fascismo com o governo de Jair Bolsonaro”, aponta ele.
Freitas, que é autor também de “Transparência e Controle na Era Digital – a Agenda da Democracia Brasileira” (Editora Armazém Digital - 2013), tinha, além das análises do seu acúmulo intelectual, motivações epidérmicas para anunciar que o porvir seria extremamente danoso para a democracia brasileira. Ele participara presencialmente das mobilizações de rua em Porto Alegre, onde proliferaram os ‘black blocs’ de tocas ‘ninja’ que, contaminando também incautos idealistas, depredavam prédios privados, garantindo a elevada efervescência do cenário de atos violentos que a mídia transmitia efusivamente, legitimando-os como protestos espontâneos contra o governo Dilma Rousseff.
“Ali, no palco dos acontecimentos, percebi claramente na prática que, por trás de tudo, havia inteligência a serviço de uma estratégia de guerra. E não tive dúvidas de que havia um golpe sendo montado em todo o país”, recorda ele, na apresentação do livro que será lançado na segunda quinzena deste mês.
De fato, ao avizinhar-se o impeachment da presidenta eleita Dilma concretizado em 2016, comprovava-se integralmente o trote acelerado do golpismo. Era, enfim, a guerra híbrida aportando no Brasil.
Sem a belicosidade das armas, o confronto é dotado de ferramentas igualmente letais para desestabilizar o governo, prender o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva impedindo-o de vencer uma eleição em que era indiscutível favorito e eleger Jair Bolsonaro, um militar da reserva, sem projetos para o desenvolvimento soberano do país, que sequer compareceu a um único debate de ideias e que apenas vociferou ódio contra a esquerda e as minorias sociais, empenhando-se em firmar atestado de fidelidade ao governo de Donald Trump, impondo triste papel de submissão à nação.
Nesta entrevista exclusiva, Freitas, porto-alegrense de 56 anos, explica o que é guerra híbrida, como ela surgiu e de que modo influenciará nos próximos pleitos, nos destinos do Brasil e no futuro do mundo.
Brasil de Fato: A palavra 'guerra' com sua conotação bélica remete para o imaginário dos combates armados. Mas não é disto que se trata quando se fala em guerra híbrida, correto?
Ilton Freitas: Sim e não. Na verdade, a “Guerra Híbrida” foi um conceito desenvolvido por militares norte-americanos e formalizado na “Estratégia Nacional de Defesa”, no ano de 2005. “Guerra Híbrida” é a reunião de recursos militares convencionais e não convencionais utilizados para derrubar governos e regimes hostis aos interesses do império anglo-americano. “Guerra Híbrida” é a guerra indireta e se vale de operações de inteligência, de comunicação e das tecnologias da informação. Por exemplo, o portentoso desenvolvimento da digitalização e suas aplicações nas atividades bélicas, a massificação da internet, a emergência de atores não-estatais como ONG’s, mercenários e grupos milicianos, a capacidade de manipulação das massas através da grande mídia, etc. Mais recentemente outro fator que veio a corroborar a opção por intervenções indiretas diz respeito a situação geopolítica. Me refiro a paridade militar com os norte-americanos lograda pela Rússia. Esse elemento torna muito complexo optar por uma intervenção militar direta, por conta de acordos e alianças regionais mantidas por russos, mas também por chineses. Vejam o caso da Síria. Nunca houve por lá uma intervenção direta dos marines, ou, mesmo do exército israelense. Simplesmente por que os russos não permitiram. Por óbvio que sob determinadas circunstâncias não se descartam intervenções militares diretas e tradicionais como as que ocorreram no Afeganistão, em 2002, e no Iraque, em 2003. Contudo, o mundo e a conjuntura já não são mais aquelas do início do novo milênio. O governo americano e o “Deep State” (que é o governo “na sombra”) sabem disso. Um novo mundo multipolar está reconfigurando as relações internacionais sob a batuta da China e da Rússia, sem falar em potências regionais como o Irã. China e Rússia vem promovendo novos blocos e alianças entre países de regiões estratégicas, descentralizando o desenvolvimento tecnológico e deslocando para o Oriente o dinamismo dos mercados. O declinante império norte-americano joga em sentido contrário ao progresso da humanidade se utilizando para isso da “Guerra Híbrida”.
BdF: Quando e onde surgiu o termo Guerra Híbrida?
Ilton: A rigor o termo e o conceito de “Guerra Híbrida” já são bem conhecidos nos meios militares e acadêmicos especializados, ao menos desde 2005, como referi na pergunta anterior. No entanto foi o analista de política internacional, o russo Andrew Korybko, que fez uma das melhores sistematizações do conceito de “Guerra Híbrida” e demonstrou com fartas evidências como o império anglo-americano aplica essa “nova abordagem adaptativa” da guerra, no século XXI e em diferentes latitudes. No ano de 2015 ele publicou o livro “Hybrid Wars: The Indirect Adaptative Approach to Regime Change”. Felizmente seu trabalho foi traduzido para o português e a editora Expressão Popular o publicou com o título, “Guerras Híbridas: Das Revoluções Coloridas aos Golpes”, em 2018. Recomendo sua leitura e estudo para todos aqueles que queiram aprofundar seu conhecimento sobre geopolítica contemporânea. A obra de Korybko foi uma referência fundamental para a reflexão que proponho em meu livro.
BdF: Em artigos, palestras e debates, o senhor apontava a montagem de um golpe institucional contra o governo Dilma já em 2015. Havia um certo gracejo traduzindo a rejeição a esta tese e, por isso, brincavam que o senhor cunhara a expressão "o golpe vem a galope". Em 2016, verificou-se que de fato o golpe corporifica-se integralmente com o impeachment da presidenta eleita.
Ilton: Em 2015, tive o prazer de trabalhar como assessor parlamentar do então deputado Adão Villaverde, do PT - diga-se de passagem que Villaverde faz falta atualmente na Assembleia Legislativa do RS. Ocorreu que, por vezes, em reuniões com os demais assessores em que se pautava o tema da conjuntura nacional, fiz observações e predisse que um golpe de estado estava sendo articulado, ou, como se diz por esses pagos, o “golpe estava vindo à galope”. O que me fazia predizer que haveria um golpe de estado foram pela ordem: a observação de processos políticos que derrubaram governos e regimes no mundo árabe em 2011, as “jornadas de junho” de 2013, no Brasil, o golpe de estado na Ucrânia, em 2014, e a cobertura midiática sobre manifestações contra o regime do presidente Assad, na Síria, em 2015, que posteriormente se transformou numa guerra. Mas não numa guerra civil, como a mídia nos queria fazer acreditar, foi uma guerra “por procuração” onde o famigerado Estado Islâmico e outros grupos islâmicos extremistas foram utilizados para perpetrar massacres contra o povo sírio. Por conta de observar com atenção a conjuntura internacional, para mim estava muito claro que o império anglo-americano queria mudar, e de fato mudou, o regime político no Brasil. Eles não queriam saber de uma “Rússia Tropical”, e na ótica imperialista era necessário retomar o controle da principal economia latino-americana. Sendo assim lançaram mão dos recursos mais sofisticados disponíveis, isto é, lançaram mão de uma “Guerra Híbrida”.
BdF: Manuel Castels, autor do clássico "Redes de Indignação", fez a leitura equivocada sobre a espontaneidade das chamadas jornadas de junho de 2013?
Ilton: A obra de Castels é uma referência obrigatória para todos que estudam as transformações na economia, na cultura e na política produzidas pelas tecnologias da informação e da comunicação. Por óbvio que um intelectual do calibre de Castels não desconhecia o fato de que as redes sociais poderiam ser instrumentalizadas por agências de inteligência do ocidente, para fins não democráticos e de manutenção do status quo imperial. No caso do Brasil, ocorreu que muitos dos que se auto definiam como seguidores de Castels não perceberam, ou não quiseram perceber que as ditas “jornadas de junho” albergaram o “ovo da serpente” fascista. Se houve espontaneidade foi no início do movimento quando a pauta dos estudantes priorizava a redução do preço das passagens do transporte público nas principais capitais do País. Mas isso foi até o início de junho daquele ano. Pois - como que num “passe de mágica” – quando a Rede Globo passou a glamourizar as manifestações, em meados daquele mês, o que se viu em concomitância foi um volume monstruoso de atividades nas redes sociais concitando jovens e população em geral para tomarem as ruas, e se manifestarem contra o sistema político no geral, a corrupção, e, na continuação, contra o governo federal em particular. Todos recordamos que os partidos políticos de esquerda e representações do movimento sindical foram escorraçados e impedidos de portarem bandeiras durante as manifestações. É que já estava em curso uma “Revolução Colorida”, que é a primeira etapa da política de “regime change” do império anglo-americano. E foi isso que muitos ativistas sociais digitais identificados com o campo democrático e popular não perceberam em tempo. Num certo sentido as manifestações de “junho de 2013” tinham o mesmo sentido à direita das “Marchas da Família com Deus”, em que setores reacionários das classes médias se manifestaram em apoio o golpe militar de 1964. Só que em 2013, as dimensões, o contexto sócio-político brasileiro e a base tecnológica foram outras. Estamos falando em mobilizações de centenas de milhares de pessoas (milhões até), de “redes sociais de guerra”, de processos midiáticos multitudinários de lavagem cerebral, estamos falando de “Guerra Híbrida”.
BdF: Considerando todo este contexto de guerras hibridas, big data, uso massivo das redes sociais e fake news, como serão as eleições futuras? E, especialmente, os pleitos do ano que vem no país e na capital?
Ilton: A preocupação central deve ser com o futuro da democracia e dos valores democráticos. Recordo que durante o segundo mandato do presidente Lula (2007-2010), discutíamos no curso de pós-graduação em Ciência Política da UFRGS, sobre como qualificar a nossa democracia, como aprofundá-la para além da democracia representativa, como reavivar e potencializar os valores e o discurso democrático. A minha tese doutoral versava sobre esse temário, pois desenvolvi o argumento de que as tecnologias da informação e da comunicação poderiam dar mais transparência às atividades governamentais, e oportunizar um maior controle do cidadão sobre os seus representantes. Mas, como diria Sun-Tzu, o inimigo também planeja. Os que conspiraram “nas sombras” e os que abertamente cumpriram com o papel de coveiros da experiência democrática brasileira, golpeando o governo da presidente Dilma, em 2016, sabiam que quanto mais democrática a nação, mais soberana e mais igualitária ela se tornaria, e isso contrasta com o estatuto colonial que o império norte-americano sempre quis nos impor, e com a agenda neoliberal dos grandes grupos econômicos de aprofundamento das desigualdades e de virulência contra os direitos sociais, e dos trabalhadores em particular. Sendo assim as forças democráticas e populares devem resistir do jeito que for, para a preservação das conquistas democráticas e por eleições justas e livres. Houve um revés democrático importante em 2018, com a interdição da candidatura do ex-presidente Lula. Uma afronta ao estado democrático de direito. Além disso os inimigos do Brasil e dos trabalhadores empregaram a rodo as ditas fake News contra o candidato do campo democrático e popular, o petista Fernando Haddad. As notícias falsas contra Haddad foram divulgadas massivamente por meio de plataformas como o WhatsApp, através do dinheiro ilegal de empresas para fins de favorecimento eleitoral de um fascista como Bolsonaro. Portanto, nossa experiência mais recente é reveladora de que em tempos de “Guerra Híbrida”, crescem as alternativas autoritárias e fascistizantes. Devemos resistir e explicar pacientemente aos trabalhadores e a juventude que o caminho para barrar os retrocessos democráticos e sociais é a organização e a luta unificada da população contra Bolsonaro, as antirreformas como a da Previdência e o desmonte criminoso do Estado brasileiro e de suas políticas públicas.
BdF: Tendo em vista o uso inquestionável de lawfare como armas estratégicas decisivas e obrigatórias destes processos, o ex-presidente Lula pode continuar confiando no Poder Judiciário brasileiro? O senhor confia que ele será libertado?
Ilton: Lula é mais do que um preso político, é um alvo de guerra. Esse é o ponto. De um modo geral – valendo tanto para a guerra tradicional como para a “Guerra Híbrida” - os estrategistas militares consideram que os estados (lato sensu) possuem cinco dimensões essenciais: a liderança, os sistemas essenciais, a infraestrutura, a população e as forças de segurança. Nem sempre o alvo principal, no caso a liderança, pode ser atingida diretamente. Reparem que no Brasil, em relação a prisão do ex-presidente Lula, tiveram que montar uma farsa jurídica persecutória descomunal para golpear a liderança. E nisso consiste a contribuição dos golpistas nativos para o arsenal da “Guerra Híbrida”, isto é, o incremento despudorado do lawfare, que consiste na utilização do poder judiciário para a perseguição política daqueles que são considerados adversários e inimigos. O problema para o imperialismo e seus associados golpistas por estas paragens, é a transformação de Lula em um mártir, em uma bandeira viva a animar a resistência popular e democrática. Não acredito que na atual correlação de forças políticas no Brasil, exista alguma possibilidade de Lula ser libertado. Não é uma questão jurídica, é uma questão geopolítica dura. A libertação de Lula estará mais próxima quando a frente golpista estiver em crise e as dissensões forem crescentes. Mas isso tem a ver com povo na rua, com luta de classes, com organização e mobilização popular. A agenda neoliberal de Bolsonaro e a destruição do Estado brasileiro, podem funcionar como pavio a acender a revolta popular. Lula sabe disso, e sabe que sua liberdade se confunde com os destinos do povo brasileiro.
Edição: Marcelo Ferreira