Um dia é uma pessoa que vive nas ruas que leva um balde de água fria. Outro dia, outra é acordada com uma chaleira de água quente. Essas são algumas das realidades que a população de rua tem enfrentado dentro do Estado do Rio Grande do Sul. De acordo com o Cadastro Único do Estado, 6.390 pessoas estão em situação de rua. A estimativa é que o contingente seja maior, visto que ela vem aumentando a cada dia. Enquanto isso, os recursos e investimentos em políticas para essa população estão sob congelamentos e cortes. Com o intuito de debater essa situação da população de rua e da assistência social, foi realizado na última quarta-feira (25), a Roda de Conversa sobre a (Des)proteção à população em Situação de Rua, no auditório da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (FABICO) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O evento foi promovido pelo Conselho Estadual de Assistência Social do Rio Grande do Sul (CEASRS) e pela Frente Gaúcha em Defesa do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), com apoio do Conselho Regional de Serviço Social (CRESS 10ª Região), do Conselho Regional de Psicologia RS (CRPRS), do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), do Fórum Estadual dos Usuários do SUAS (FEUSUASRS) e do Fórum Estadual dos Trabalhadores do SUAS (FETSUASRS). Ao final, foi redigida uma carta onde os presentes se manifestaram pela constituição de uma agenda de compromissos. Clique aqui para ler a carta.
Para o defensor público estadual, Mário Rheingantz, coordenador do Centro de Referência em Direitos Humanos da Defensoria Pública (CRDH), que compôs a mesa da manhã do debate, acaba-se construindo a racionalidade na sociedade no sentido de que a pessoa em situação de rua não pode estar ocupando determinados espaços, o que legitima a violência policial e remoções sem ordem judicial.
“É preciso colocar na cultura da nossa sociedade e especialmente das forças da segurança pública que o local em que a pessoa em situação de rua reside é um domicílio, e o domicílio tem uma proteção constitucional que diz que ninguém pode entrar ou violá-lo, salvo com ordem judicial, em flagrante delito ou para prestar socorro. Vocês que atuam na ponta, atendendo e acolhendo as pessoas, precisam, além de tudo, serem reprodutores do discurso de educação em direitos, se apropriar da noção de que domicílio”, aponta.
A presidente do Colegiado Estadual de Gestores Municipais de Assistência Social do RS (COEGEMAS), Natália Steinbrenner, comentou o aumento da população nessa situação de invisibilidade em todas as cidades. “Nós, enquanto gestores públicos das políticas públicas municipal, estadual ou da política nacional da assistência social e das outras políticas públicas, precisamos trabalhar esse fenômeno e buscar alternativas e uma rede de proteção para incluir esses cidadãos. A politica de assistência social a nível nacional está sendo bastante desmontada”, expõe.
“Eu falo a ferida, eu sei a realidade, eu vim de lá, e a rua não vai sair de mim porque é um aprendizado”, afirma Cícero Adão Gomes, ex-morador em situação de rua, integrante do MNPR e FEUSUASRS. Para ele, que viveu 13 anos nessa situação, o contexto é muito além do que se possa imaginar. Na primeira mesa da manhã, desabafou sobre a situação atual do município de Porto Alegre, em especial do Instituto Municipal de Estratégia de Saúde da Família (Imesf), dos abrigos com as parceirizações e também da Escola de Porto Alegre (EPA).
“A pessoa que tratava o cara, que o atendia por 15 ou 20 anos, vai ter que sair, vão botar uma pessoa que nunca me viu. Nos abrigos, vão trocar as pessoas que já conheciam a gente e botar outras que também nunca nos viu. Eles querem tirar nosso direito de estudar, porque se estudarmos vamos ficar inteligente e se ficarmos inteligente, não vão mais nos enrolar. Por isso eles sempre estão enfrentando a escola EPA. Vão ter que regredir para melhorar? E nessa regressão, quantas pessoas que já estão mais ou menos organizadas vão se desencaminhar?”, indaga Cícero.
Na sequência, a diretora do Departamento de Assistência Social do Estado do RS, Ana Almeida Duarte, representando a secretária Regina Becker, e a assistente social do Cadastro Único/Bolsa Família, Rosimeri Fanfa, apresentaram dados sobre a situação no Estado. De acordo Ana, a situação do setor se encontra em um momento crítico em termos de recursos humanos e de orçamento. “Nossa cota baixou. Temos feito reuniões com o governador para que nossa cota seja ao menos mantida”, assegura. Por sua vez, Rosimeri observa que a ausência de averiguações confiáveis sobre quantos são e como vivem essa população torna mais difícil elaborar e implementar medidas que os desenvolvam à plena cidadania.
De acordo com os dados apresentados, nos 497 municípios gaúchos existem 591 Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), distribuídos em 480 cidades, 135 Centros de Referência Especializado de Assistência Social, 13 Centros POP e 31 serviços de acolhimento.
Experiências municipais
Conduzida pelo presidente do CEASRS, Marcelo da Silva, a mesa da tarde abordou as experiências nos municípios de Novo Hamburgo, Cruz Alta e Santa Rosa.
Maike Luiz de Mello, do Centro POP de Novo Hamburgo, contou que a estrutura do centro atende diariamente 60 pessoas por dia, de segunda a sexta. “Por conta da desconstrução da politica pública, nos últimos três anos, perdemos sete dos nove educadores que tínhamos. Além dos dois educadores, temos, cinco técnicos, dois psicólogos e três assistentes sociais”. No centro é servido café da manhã e lanche. A proposta de um restaurante popular existe há anos no município, mas até o momento não se concretizou. “Houve uma proposta de se ter uma parceirização, mas como não há possibilidade de manutenção, a gestão recuou, não quis fazer por conta de não poder manter o atendimento depois”, comenta Maike.
Ederson Finimundi Firno, usuário do Centro Pop do município hamburguense, que entre idas e vindas viveu na rua por 15 anos, tece elogios ao centro, contudo critica a falta de recurso e de investimento do poder público. “Cada ano que eu entro e saio da situação de rua, a população aumenta. O pessoal do centro faz o que pode, mas tem a falta de recurso. Na rua a gente se acomoda, e toda vez que eu encontro força para sair da situação, o sistema acaba enfraquecendo. A prefeita tem deixado a cidade bonita, mas os moradores de rua ficam cada vez mais excluídos do centro. Fica difícil o morador dormir na praça bonitinha, mas enquanto isso o POP está sem sabonete e barbeador. Tomara que alguma coisa saia daqui, não fique só no papel”, argumenta.
A cidade de Cruz Alta, com pouco mais de 60 mil habitantes, tem cerca de 15 pessoas em situação de rua, de acordo com Cláubia Grabe, psicóloga do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) da cidade. Ela explica que a finalidade do centro é fortalecer os vínculos familiares que em algum momento se romperam e ajudar na construção de novos projetos de vida. “Percebemos que a maioria dos nossos usuários não tem uma perspectiva de futuro. Buscamos fazer com que o CREAS seja um endereço institucional para essas pessoas, para que elas se vinculem a qualquer um dos profissionais que estão lá”.
Ivete Correia, secretária municipal de Santa Rosa, expôs que no município há uma casa de passagem que acolhe 20 pessoas do sexo masculino e 10 do feminino e família. O município tem 75 mil habitantes e possui em seu entorno cidades menores, de 2 a 3 mil habitantes que, de acordo com ela, em geral, não têm população de rua, já que essas pessoas migram para Santa Rosa. Segundo informou Ivete, o município possui CREAS e faz abordagem social, junto à saúde e educação. Para ela a maior dificuldade encontrada é a quebra do vínculo familiar.
Participando também na mesa da tarde, Cícero Adão Gomes ressaltou que para as pessoas não voltarem para a situação de rua é preciso ter um alicerce, um porto seguro, um impulso. Para ele, uma das saídas é a criação de projetos e oficinas. E usa sua história como exemplo: “Meu impulso foi o Movimento de População de Rua. Através dele, fui convidado para o jornal Boca de Rua. Em 2014 e 2015, fiz nove projetos, eu não tinha tempo de usar droga. Fizemos também oficina de teatro”.
Doris Pinto, representante do Conselho Regional de Psicologia no FETSUASRS, frisou que os trabalhadores estão sobrecarregados e que, todos os dias, serviços e programas estão fechando, independente do lugar, acarretando o adoecimento de colegas. “O número de população de rua está aumentando em todos os lugares, mas os equipamentos e profissionais ou diminuiriam ou se mantém o mesmo”, desabafa.
A falta e o congelamento de recursos reflete na impossibilidade de planejar projetos, oficinas de geração de renda. Para Doris, isso deriva também da falta diálogo do poder executivo. “O gestor não discute com a gente o planejamento financeiro ou as demandas que o Estado tem. Quando se fala em falta de investimento, observamos que uma das primeiras afetadas é a população em situação de rua”, destaca.
Para o presidente do Conselho Regional de Serviço Social (CRESS), Agnaldo Engel Knevitz, a onda conservadora que vem tomando conta do país se expressa em diversas formas. “Em relação à população em situação de rua, o que temos acompanhado, cada vez mais, são as práticas higienistas que são empregadas, e cada vez mais uma responsabilização e uma criminalização dessas pessoas, onde elas são vistas como perigosas, com bandidos, vistas como alvo da segurança pública e não alvo de proteção social”, disse.
Ao comentar o desmonte na assistência social, disse que a opção por um governo ultraliberal fez com que toda a arrecadação, todo fundo público, esteja sendo destinado para o financiamento do grande capital, com o mínimo para a classe trabalhadora. “Todas as políticas públicas têm sofrido esse desfinanciamento, mas em especial a política de assistência social, que tem sido alvo de cortes sucessivos e, especificamente, uma desresponsabilização total da União em relação o cofinanciamento”, afirma.
Agnaldo observa que muitos municípios de pequeno porte no país dependem exclusivamente, ou majoritariamente, do cofinanciamento federal, e que o não financiamento pela União significa a morte do SUAS em muitos municípios. Para ele, a saída é coletiva precisa ser construída em espaços participativos e democráticos, em pontos de encontro onde se possa convergir para mesma pauta.
Edição: Marcelo Ferreira