Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | A distopia brasileira entre o future-se e a pós-verdade

"Compreende-se, de acordo com o movimento iniciado na UFSC, a importância de uma mobilização nacional"

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Devido à lotação no debate sobre educação na ALESC, muitos assistiram em telão instalado do lado de fora do auditório
Devido à lotação no debate sobre educação na ALESC, muitos assistiram em telão instalado do lado de fora do auditório - Foto: Maiara Marinho

Em 1953, o escritor estadunidense Ray Bradbury escreveu o clássico Fahrenheit 451, história que narra um futuro em que o acesso a livros é proibido. Como punição, os livros encontrados são queimados pelos bombeiros. Por isso Fahrenheit 451, pois é a temperatura em que o papel dos livros atinge o ponto de ignição e é consumido pelo fogo. Uma das principais sugestões do livro é apagar o passado e não possibilitar qualquer sugestão de um futuro diferente do presente. Bradbury denunciava, também, as possíveis consequências desastrosas para a cognição humana que poderiam ser causadas pelo acesso à televisão. O que faz bastante sentido quando sabemos que o livro foi escrito na mesma década do advento da televisão. Trata-se, portanto, de uma distopia. Isto é, a suposição de um futuro autoritário e obscuro em decorrência de um determinado fator.

Anteriormente, distopias literárias já haviam denunciado o obscurantismo e o autoritarismo de verdades únicas e da censura ao pensamento como, por exemplo, Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, 1984 (1949), de George Orwell, sendo estes os mais conhecidos, e, posteriormente, Laranja Mecânica (1962), de Anthony Burgess. Já as distopias contemporâneas fazem denúncias ao desenvolvimento da tecnologia, como a série Black Mirror, de Charlie Brooker, enfatizando muito mais questões de sociabilidade do que críticas às instituições políticas.

O atual contexto é um contexto mundial de retrocessos econômicos, alto índice de desemprego, reformulação na configuração do mundo do trabalho e de negação ao conhecimento e à ciência. A dialética da realidade faz com que não apenas as relações de produção sofram alterações nas crises cíclicas do capital, como também as relações políticas e as sociais. Dessa forma, a identidade e a consciência são bombardeadas pela batalha das ideias em um cenário de disputa para a saída da crise. Quando a estrutura precisa mover-se para compensar os prejuízos do capital e retomar o crescimento da taxa de lucro, as ideias até então formuladas precisam, da mesma maneira, movimentar-se. O resultado surge de um conjunto de fatores do passado e do presente, dos agentes envolvidos, do que já foi acumulado até então de conhecimento e entendimento da realidade.

No caso do Brasil, o que começou com o ataque ao Partido dos Trabalhadores, desenvolveu-se para um ataque a um conjunto de ideias contra-hegemônicas. Os meios de comunicação hegemônicos têm um papel fundamental no atual contexto de negação ao conhecimento. Grandes veículos como Rede Globo, Folha de São Paulo e o Estadão, contribuíram com a pós-verdade com uma série de argumentos fictícios. Negaram, desde 2008, que a crise era sistêmica e sugeriram como saída o avanço da privatização e as reformas do capital: a terceirização, as reformas trabalhista e a previdenciária. Prometeram para a população que a única possibilidade de redução do desemprego seria com a Reforma Trabalhista. Mas eles já sabiam que esta reforma viria para pagar a conta do capitalismo e não para oferecer mais empregos. A reforma viria para precarizar o trabalho e, com isso, oferecer mais lucros aos mais ricos. Mas então havia a reforma previdenciária, tão difícil de convencer. Utilizaram-se, portanto, novamente, do mesmo argumento para a primeira reforma: somente o conjunto de reformas poderia resolver os problemas que o Brasil enfrenta.

Seria interessante pensar, se não fosse triste, como a narrativa kafkiana (e não kaftiana) aparece não só no processo de impeachment de Dilma Rousseff e na prisão de Lula, como também na nova estrutura do mundo do trabalho. Com a terceirização e a flexibilização, a quem recorrer quando o que antes era sabido ser um excesso ao trabalhador/a hoje é visto como resiliência e perseverança não só pela mídia e pelo mercado, como também para a justiça? Com o golpe jurídico-parlamentar-midiático, a crise do capital, a interferência dos meios de comunicação hegemônicos na batalha das ideias, a eleição de Jair Bolsonaro (sic) e o desmonte da educação, o horizonte da consciência tem sido o obscurantismo.

O projeto de lei que institui o Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras - Future-se vem com o objetivo de reestruturar a maneira de formular conhecimento, isto é, a maneira de compreender a realidade, de analisá-la e de interpretá-la. Isto porque “o Future-se tem como objetivo interferir também no modo de produzir conhecimento, assim como no Plano de Carreira, no currículo e na organização dos próprios departamentos”, segundo Daniele Rehling, professora substituta do curso de Educação do Campo, na Universidade Federal de Santa Catarina. Ainda que não esteja explícito no Projeto de Lei, é evidente, segundo Daniele, o quanto ele vai interferir na formação dos currículos, principalmente quando se entende “o currículo como algo mais amplo, isto é, o currículo dos cursos não será mais formado pensando em como sanar os problemas da população, isto inclusive faz parte dos princípios universitários. Então precisamos olhar para as reformas trabalhistas e previdenciária, Escola sem Partido, Reforma do Ensino Médio, como projetos que vem nesse sentido de construção do conhecimento, servindo apenas para o mercado de trabalho, tornando o conhecimento cada vez mais uma mercadoria para exportação”, finaliza a professora.

UFSC rejeita o Future-se 

A Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) foi a primeira universidade a se posicionar contra o Future-se em Conselho Universitário no início de setembro. Em seguida, os Centros Acadêmicos e o Diretório Central dos Estudantes, em assembleia com cerca de 5 mil estudantes, determinaram greve. Gradualmente os cursos foram paralisando suas atividades a partir da iniciativa dos discentes. Há divergências entre discentes e docentes quanto a greve. Não são todos os cursos que estão paralisados, nem todos os docentes que aceitam a greve. Contudo, em audiência pública sobre a atual situação da UFSC, na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, na última segunda-feira (16), docentes do Colégio de Aplicação da UFSC e técnicos/as de assuntos estudantis da própria universidade fizeram presença e falas em favor da greve, contra o Future-se e em defesa do desbloqueio dos 30% da verba para a educação. Muitos ali presentes denunciaram que o valor bloqueado para que as universidades terminem o ano de 2019 será destinado àqueles deputados que votaram favoráveis à reforma da previdência, como promessa de pagamento feita pelo governo.

No entanto, é de se questionar como esse movimento inicia no Estado que mais destinou votos a Bolsonaro. Mas se olhamos para trás, lembramos das ocupações nas escolas e do movimento estudantil secundarista no país inteiro e então hoje vemos os frutos de tão importante levante estudantil. De qualquer maneira, o Estado de Santa Catarina continua sendo bastante conservador e a universidade continua sendo um lugar restrito com uma linguagem muitas vezes inacessível. Para enfrentar essas problemáticas, estudantes da UFSC estão organizando o ‘UFSC na praça’ que busca dialogar com a população sobre os significados do Programa Future-se, das transformações no mundo do trabalho e da própria greve. Esse diálogo entre a população é fundamental, pois os projetos que já vieram e os que estão por vir, fazem parte de um projeto de nova sociedade, de novas formas de sociabilidade, de construção do conhecimento, de direitos sociais. Portanto, não faz sentido debater apenas nos corredores dos departamentos.

Ana Carla Bastos, técnica em assuntos estudantis da UFSC, que trabalha no Centro de Ciências Agrárias (CCA), conta como esse sentimento de mobilização chegou aos trabalhadores/as de sua categoria. Segundo ela, “começou a partir dos próprios estudantes do CCA; eles entraram em greve e aí a gente pode dizer que a partir disso a gente começou a pensar no que fazer. Na verdade, teve também um grupo de trabalho que a UFSC montou para discutir o Future-se, aí também veio esse grupo de trabalho e fez uma apresentação lá [no CCA]. A partir dali o pessoal começou a pensar também ‘olha a gente precisa sentar e conversar e discutir o Future-se’, tudo por whatsapp, chamando um e outro e aí começamos a fazer reunião local”. De acordo com Ana, a participação da categoria como um todo tem sido baixa, mas ela e outros/as colegas do CCA buscam fazer atividades no próprio Centro. “Nós fizemos o ‘CCA de portas abertas’; a gente abriu o Centro no final de semana com várias atividades para a comunidade vir e conhecer, nós fizemos uma caminhada no Dia Nacional de Paralisação em Defesa da Educação. Fora isso a gente vem pensando em formas de abrir o CCA para a comunidade vir conhecer, promover mais visitações, trazer mais atividades que acontecem na Trindade para acontecer no CCA. Assim o pessoal fica mais ciente do que está acontecendo [na universidade]”, complementa a servidora. Ainda segundo Ana, existe uma cultura na UFSC de compreender a greve como uma mobilização ‘do pijama’ e, apesar disso, as pessoas compreendem que o que está acontecendo é muito grave só não sabem como conduzir essa greve.

Esse movimento ainda está em seu processo de germinação. Nem todas as universidades brasileiras aderiram à greve, nem mesmo todas as categorias. Eduardo Campos, estudante de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Diretor de Universidades Públicas da União Nacional dos Estudantes (UNE) afirma que não é no país todo que se tem o clima de greve. Segundo ele, “no Rio de Janeiro e em alguns lugares de São Paulo, as universidades não estão em clima de greve, pois muitos entendem que se for fechar a universidade, não faz sentido, pois elas ficarão desmobilizadas e sem atuação”. Para ele, “o que acontece na UFSC é diferente, as pessoas fazem a greve mas a partir da greve existe o universidade nas ruas [UFSC na praça], os estudantes estão na universidade se mobilizando, fazendo assembleias. Esse é o modelo de paralisação que a gente preza mas pra isso a gente tenta hoje construir um clima nas universidades”.

Em audiência pública na ALESC, as falas pediram o arquivamento da reforma da previdência, a restituição dos 30% bloqueados para a educação superior, a revogação da Emenda Constitucional 95 (conhecida anteriormente como PEC do teto de gastos), entre outros. O representante da Associação de Pós-Graduação da UFSC, Hiago Mendes, mencionou a questão de saúde mental na pós-graduação e enfatizou que bolsa não é privilégio, pois é com ela que os estudantes sobrevivem para conseguir desenvolver suas pesquisas. Victor Klauck, do DCE da UFSC, lembrou que “o Bolsonaro não inaugura os cortes, ele radicaliza os cortes”, fazendo referência a todos os governos anteriores que também cortaram verbas significativas da educação.

Por fim, compreende-se, de acordo com o movimento iniciado na UFSC, a importância de uma mobilização nacional, seja em estado de greve ou não, mas que seja feito com significativa participação da comunidade como um todo e que tenha um teor dialógico e de comprometimento com todas as pautas que estão inseridas neste grande projeto para um novo modelo de sociabilidade que tem sido inaugurado no Brasil com a atual gestão presidencial. Está evidente que vivemos o anúncio de uma distopia do obscurantismo. A responsabilidade é nossa de encontrar saídas e continuar os avanços pelos quais gerações anteriores tanto lutaram para que vivêssemos em uma sociedade crítica e democrática.

* Maiara Marinho é jornalista e Mestra em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente faz parte da coordenação do Instituto de Estudos Políticos Mário Alves, de Pelotas (RS)

Edição: Marcelo Ferreira