Por muito pouco o CTG Sinuelo da liberdade não foi pequeno para acolher as cerca de 800 pessoas que estiveram presentes nas atividades da II Feira das Sementes Crioulas, realizada pelo Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e Cooperativa Mista dos Fumicultores do Brasil (Cooperfumos), contando com mais uma dezena de entidades e organizações apoiadoras. A programação se estendeu desde o início da manhã do dia 11 de setembro até o final da tarde, contemplando atos públicos, seminário, oficinas, feira de sementes, exposições, relatos de experiências e comercialização de produtos agroecológicos e artesanato. Nos espaços de exposição estiveram representadas 27 experiências – sejam individuais ou coletivas – e, pelo palco, manifestaram-se mais de uma dezena de painelistas.
– Nosso sentimento ao final do evento é de missão cumprida – destaca o dirigente do MPA Josuan Schiavon. Para ele, conforme o esperado, os debates em torno da produção e da alimentação centraram as atenções, em especial quando foram abordados a partir da perspectiva de uma escolha política. “Os momentos em que se colocou em debate a produção de alimentos pelo sistema da agroecologia e a alimentação humana (em especial a partir do conceito de soberania alimentar) foi onde se pode notar maior interesse e participação do público presente”, explica. Para Schiavon esse é um detalhe a parte, que anima os presentes para seguir empreendendo sua luta em defesa da implantação do Plano Camponês e suas metas de organização social das comunidades e seus arranjos produtivos locais. “Essa segunda edição da nossa Feira das Sementes Crioulas trouxe uma verdadeira injeção de ânimo, veio para revitalizar as forças, essa é a leitura da coordenação do movimento”, completou.
De mãos dadas
Lideranças de diversos segmentos se fizeram representar durante a programação, tanto no que se refere à matriz política, quanto aos segmentos sociais e produção de conhecimento. Um dos mais empolgados era o Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Encruzilhada do Sul, Elicélio Machado: “É muito importante receber todos vocês em nosso município, é um dia de festa, de confraternizar e trocar sementes, mas também de mostrar para todo o estado a importância das nossas organizações, do trabalho dos pequenos agricultores, dos movimentos sociais e das conquistas que conjuntamente vamos construindo”.
Miqueli Schiavon, presidente da Cooperfumos e integrante da Direção Nacional do MPA, o maior exemplo desse viés positivo foi o estabelecimento da Unidade de Beneficiamento de Sementes que levou o nome do saudoso dirigente do MPA Gilberto Tutenhagen, sendo a única no estado operando de forma dedicada à produção das sementes crioulas e varietais que resultam dos métodos tradicionais de seleção genética e melhorias. “Aqui, neste dia, não estamos pensando em nós mesmos, estamos olhando pra frente, pensando nas futuras gerações, no futuro da agricultura do Brasil, no desafio de alimentar o povo – em especial o trabalhador e a trabalhadora – com comida boa, saudável, agroecológica”, completou.
O Prefeito Municipal em exercício, Álvaro Damé Rodrigues, saudou a organização, o movimento e todos os apoiadores: “O município é parceiro de todas as ações e movimentos que visam trazer renda e alimento à mesa do trabalhador”. O intercâmbio de saberes e a troca de experiências entre públicos vinculados a diferentes meios (urbano e rural) e faixas etárias (jovens e veteranos) foi saudada pelo gestor: “É uma oportunidade de conhecimento e troca de experiências para todos os trabalhadores, são momentos como esse que precisam ser aproveitados, onde deixamos nossas diferenças de lado e trabalhamos juntos para construir, para somar, para fazer acontecer”. O vereador Álvaro Pereira Sperb, que manifestou-se em nome do Poder Legislativo foi no mesmo sentido, garantindo que a Câmara local está alinhada a todas as pessoas e movimentos que buscam o bem, a convivência em comunidade, a harmonia. O edil cumprimentou os organizadores e, remetendo-se ao público, congratulou os cerca de 200 alunos de escolas locais que estavam naquele momento visitando a Feira. Já Ricardo Lúcio, representante da Secretaria de Agricultura do RS preferiu ressaltar que a feira de Encruzilhada do Sul é um evento consolidado e já alcança status de âmbito estadual: “Trata-se de um evento de grande simbolismo para o Rio Grande do Sul, que atrai olhares a partir da perspectiva de cada agricultor e agricultora que desenvolvem seu trabalho por meio da atividade camponesa, reafirmando a necessidade de seguirmos buscando construir políticas públicas que atendam as necessidades do segmento”, falou.
O futuro é uma semente
O pesquisador Chefe da Embrapa Clima Temperado de Pelotas, Clênio Pillon, enalteceu os elos que interligam a tradição e a ciência e distinguiu a importância do evento especialmente se analisado a partir da conjuntura social e política atual. “Essa aqui não é apenas uma feira ou uma festa, é uma grande demonstração de resistência. Quando muitas políticas públicas estão em cheque, sendo soterradas, realizar esse evento evoca um simbolismo muito forte, tem um significado muito grande para todos nós”. Para o pesquisador a união de esforços em torno de um objetivo comum é o diferencial que viabiliza o evento e, mais que isso, a continuidade do trabalho do e pelo campesinato: “Isso mostra que com pouco se consegue fazer muita coisa, mas com uma condição, que a gente se dê as mãos, que a gente tenha humildade de reconhecer que o amigo, que o companheiro, que o parceiro institucional possa trabalhar junto conosco por uma causa maior”. Relembrando muitos projetos em que a instituição esteve lado a lado com os camponeses, afirmou: “A Embrapa está aqui não apenas para participar, mas também para aprender com vocês. Nós não estamos aqui simplesmente trocando sementes, nós estamos celebrando a vida”.
A pauta da educação também recebeu atenção durante o evento, uma vez que dialoga de maneira direta com temas centrais do Plano Camponês – síntese política que norteia as ações do MPA enquanto movimento social. Isso dá ainda mais destaque à fala do professor João Batista Fontoura Cardoso, que representou o CPERS na atividade: “Fazer perseverar a ideia da produção e da alimentação saudável, onde predomine a agroecologia e se viabilize o acesso do povo ao alimento de qualidade é uma tarefa imensa em um período em que o governo diariamente libera grandes quantidades de agrotóxicos”. A palavra “resistência” novamente foi trazida ao debate, valorizando a proximidade entre tradição e ciência quando buscam objetivos comuns: “Quando temos essa troca, do saber popular e do saber científico, vemos que há uma luz no fim do túnel”. Para o professor é preciso insistir no diálogo com a juventude, trabalhar diariamente para que os estudantes tenham acesso e compreensão dessa mensagem: “Essa feira representa muito para nós que acreditamos que um outro mundo é possível, reforça nossa certeza que o caminho pode ser outro e bem diferente”.
Nova geração camponesa
Integrante da direção nacional do MPA, Frei Sérgio Görgen dividiu sua manifestação em dois eixos centrais: a defesa do Estado e a consolidação de uma nova geração camponesa. Para ambos os temas, o desafio é semelhante, fomentar uma militância consciente, crítica, interessada em construir, em resistir.
– “Algo muito importante neste momento na história do Brasil é fortalecer as estruturas do estado – seja em alcance municipal, estadual ou federal – independentemente de quem esteja governando, para que estejam a serviço do povo. Nós – o povo, principalmente os pobres – precisamos da ação do estado. Quem não precisa do estado são os ricos”, afirmou. Görgen relembrou que não é de hoje que o MPA defende a ideia de um estado eficiente, atuante, do tamanho que o povo precise: “Nós queremos um estado onde as pessoas atuem com honestidade, que respeitem as prioridades do povo. Mas nós não aceitamos essa conversa de que o povo não precisa do estado”.
A respeito do segundo tema – a juventude -, Frei Sérgio afirmou que o MPA está orgulhoso e animado com o protagonismo que seus jovens estão aceitando empreender e a forma como estão integrados às pautas do movimento. “Quero fazer afirmações muito importantes, muito sólidas na ideia que nós estamos desenvolvendo: a semente crioula, a biodiversidade, a alimentação saudável, a agroecologia não são coisas do passado, são o presente e o futuro, o verdadeiro sentido da agricultura é produzir alimento saudável, é produzir condições de vida dignas, não é o atraso como alguns dizem e pensam”. Para Görgen, a agroecologia “é a ponta da ciência, é a ponta da tecnologia, é a ponta de uma vida digna no campo” e por isso é preciso que todos estejam dispostos a construir uma nova geração camponesa. “Não tenham vergonha de ser agricultores e agricultoras. Em um futuro próximo, a possibilidade de emprego estará no campo e não mais nos centros urbanos. Enquanto a tecnologia 4.0 vai diminuir os postos de trabalho na cidade, no campo – para produzir alimento saudável em grande quantidade – será preciso empregar força de trabalho”, refletiu.
Frei Sérgio enalteceu como heroica a luta dos movimentos sociais ligados ao campo, comprometidos em manter e defender a semente crioula como um bem comum da humanidade e não como um lastro monetário como pretendem os grandes empreendimentos do agronegócio e destacou que o MPA de modo especial está aprofundando seu trabalho nas comunidades, reorganizando sua base para defender esses princípios e esse modelo de agricultura que produz alimento saudável, preserva a natureza e fundamenta o surgimento dessa necessária nova geração camponesa em nosso país.
Formalização de parcerias
Durante a programação da II Feira das Sementes Crioulas de Encruzilhada do Sul foram formalizados dois termos de parceria que potencializam o trabalho e as pautas dos camponeses e camponesas na região.
No primeiro ato, a Coperfumos assinou junto à Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) um contrato de aquisição de sementes da agricultura familiar, através do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), beneficiando agricultores familiares tradicionais, índios e quilombolas com um volume total de 20 toneladas de sementes de feijão e 10 toneladas de sementes de milho. Além dos dirigentes das cooperativas e da instituição pública, assinaram junto o contrato dois agricultores produtores de sementes vinculados à UBS Gilberto Tutenhagen.
Também foi assinado durante o evento o Acordo de Cooperação Técnica entre a Cooperfumos e a Embrapa Clima Temperado, visando o estabelecimento de um plano de trabalho que versa – entre outros temas – sobre a formalização da parceria entre a instituição e os agricultores camponeses da região, integrantes da base do MPA. Tanto o movimento quanto a Embrapa se comprometem em avançar no melhoramento genético de variedades de sementes que estão sob responsabilidade dos camponeses considerados “guardiães de sementes” e “guardiães melhoristas”. Neste sentido a Embrapa Clima Temperado disponibiliza pesquisadores para acompanhar as demandas dos camponeses e oportuniza formações para as equipes técnicas que trabalham para capacitar e profissionalizar ainda mais a produção de sementes.
Dever cumprido
– Um ponto importante é o compromisso da nossa base em se manifestar frente as coisas que estão acontecendo no país e fizemos isso mostrando nossa maneira de produzir, mostrando que nós existimos e que estamos resistindo de uma maneira firme e propositiva – explicou Leandro Noronha de Freitas, o Ganso, que também atua na direção do MPA no RS. “A festa foi importante em muitos aspectos, mas principalmente porque colocou em evidência o campesinato, abriu canais de diálogo com outros setores da sociedade que se fizeram presentes, despertou o interesse e motivou o engajamento de jovens do campo e da cidade e, acima de tudo, mostrou e comprovou que a agroecologia é uma solução viável para a demanda que a sociedade nos apresenta de ter acesso a uma comida de qualidade e produzida sem veneno, diferente do que oferece o modelo nocivo de agricultura que o tentam nos impor”, arrematou.
Cansados, porém felizes, estavam os organizadores e voluntários que somaram esforços para efetivar a segunda edição da Festa das Sementes Crioulas. Para a dirigente do MPA no RS, Vandeléia Chittó, o sentimento e a mensagem que a feira passou é de dever cumprido. “O evento deu uma injeção de ânimo para todos nós, em especial para o MPA enquanto movimento. O encontro mostra quanta diversidade temos, coloca em destaque o quanto conseguimos avançar, mostra uma diversidade enorme tanto no aspecto da produção, da partilha de saberes e do nosso jeito de ser”, afirmou. Relembrando com saudade companheiros e companheiras do passado, Léia citou nominalmente o saudoso Gilberto Tuhtenhagem, personagem referencial na região, falecido tragicamente há dois anos: “Tenho certeza que, de onde ele está, seu olhar está voltado para cá, está se sentindo orgulhoso de ver que as sementes que foram plantadas estão dando seus frutos, que o trabalho que foi iniciado lá atrás está tendo continuidade pelas mãos de novas lideranças, renovando o protagonismo do camponês e da camponesa”. Para a dirigente é preciso viabilizar mais momentos de confraternização e debate, de celebração e mobilização, tal como foi feito em Encruzilhada do Sul, como forma de reforçar os elos do campesinato enquanto classe, aproximar as pautas do campo e da cidade, mostrar a todos que o alimento que é levado até as mesas diariamente deve fundamentar um projeto popular comum a ser construído e defendido por todos os segmentos.
Edição: Marcelo Ferreira