Há uma disputa silenciosa acontecendo na luta por terra e territórios quilombolas no país. De um lado famílias que lutam para manter sua ancestralidade e seus direitos, do outro grileiros, empreendimentos e mineradoras. Soma-se a isso a morosidade no processo de titulação, agravado pela paralisação dos processos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e o baixo orçamento para a titulação dos territórios quilombolas no país.
Em meio a isso, nesta terça-feira (17), uma vitória das comunidades quilombolas. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), em Porto Alegre (RS), julgou dois recursos sobre direitos territoriais da Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha, que fica em Reserva do Iguaçu (PR). Um deles diz respeito ao pedido de reintegração de posse que ameaçava a comunidade de despejo, que foi suspendido. O outro, concedido, obriga o Estado brasileiro a destinar recursos ao Incra para a aquisição de áreas do quilombo que já tenham Decreto de Desapropriação assinado. A decisão saiu no final da manhã, por dois votos a um.
De acordo com o site Terra de Direitos, em março desse ano, a juíza federal Sílvia Regina Salau Brollo, da 11ª Vara Federal de Curitiba, concedeu liminar obrigando a autarquia federal a titular uma área de 225 hectares que já tinha recursos para desapropriação disponíveis desde 2016. Assim como negou o pedido de reintegração de posse realizado pela Cooperativa Agrária, empresa proprietária das terras, alegando que “a situação dos quilombolas mostra-se frágil, pois aguardam há muito tempo a demarcação de território a que, aparentemente, têm direito”.
A liminar foi cumprida com a concessão do título de parte do território, mas a União recorreu da decisão que a obrigava a repassar recursos ao Incra. O Paiol de Telha é o primeiro e único quilombo titulado do Paraná, processo que começou em 2004. Em 2014 o Incra reconheceu o direito à titulação da totalidade do território. As famílias da comunidade, estimadas entre 300 a 400, lutam pela totalidade da titulação.
Moradora do Paiol da Telha desde que nasceu, há 74 anos, Maria Clara Gonçalves de Oliveira conta que, assim como ela, seus pais também nasceram, se criaram e se casaram no quilombo. “Essa luta representa muito porque é a dos nossos antepassados que deixaram para nós, para não desacorçoarmos com a luta, porque sabiam que ia acontecer isso. Eles deixaram essa tradição pra nós. Hoje estamos na resistência, e estamos lá na terra, estamos lutando e não vamos parar”, afirma.
Luta pela titulação
Existem atualmente no país 1.716 processos abertos para titulação de quilombos. Desses, 137 estão no Rio Grande do Sul, 86 em andamento. Titulados, em solo gaúcho, existem apenas quatro territórios. Em Porto Alegre, o quilombo da Família Silva, primeiro quilombo urbano do país, foi parcialmente titulado em 2010. Ao todo, na capital gaúcha, existem sete quilombos urbanos.
Fora a morosidade e a paralisação dos processos, as comunidades quilombolas sofrem com o orçamento apertado para as titulação. Segundo o Terra de Direitos, para 2019 serão disponibilizados apenas R$3,4 milhões. O orçamento de 2010, como exemplo, foi cerca de R$ 54 milhões. No atual ritmo, o Brasil levaria mais de mil anos para titular todas as comunidades quilombolas. Em 30 anos desde que o direito ao território tradicional quilombola foi reconhecido na Constituição Federal de 1988, apenas 44 comunidades foram tituladas pelo Incra.
Seminário debate resistência
Para discutir a situação das comunidades quilombolas no país, em especial a situação da comunidade Paiol, foi realizado na tarde de segunda-feira (16), no Ministério Público Federal em Porto Alegre, o Seminário Territoriais Quilombolas: paralisia do Estado e violações de Direitos Humanos.
O artigo 68 da Constituição garante que os remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras tenham a propriedade reconhecida. Em 2003, no governo Lula, foi assinado o Decreto 4887 que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. Contudo, mesmo esses mecanismos não são suficientes para garantia do cumprimento do direito.
Para Maira Moreira, advogada da Terra de Direito, que conduziu os trabalhos da mesa durante o seminário, a política quilombola reúne uma série de lutas fundamentais no Brasil. “Em termos de luta por terra e território, ela traduz a exclusão histórica que se coloca em relação à população negra e de trabalhadores rurais. Isso tem uma longa trajetória na nossa história e o Paiol, hoje, reflete muito dessa luta”, aponta.
Ao comentar a incongruência que é o Paiol ser a única comunidade que teve parte do seu território titulado durante o governo Bolsonaro, que se manifesta expressamente contrário à política quilombola, a advogada destaca a responsabilidade do TRF4 no julgamento. “A decisão não é só sobre o Paiol, mas reflete também pouco o destino de todas as comunidades no Brasil”.
Opinião compartilhada por Roberto Potássio Rosa, da Federação das Comunidades Quilombolas. “Aqui não está em jogo só o Paiol de Telha, mas tantas outras comunidades. O Estado parece que ainda não nos pensou, não nos enxergou. Se vamos reparar o orçamento para quilombolas, ele quase não existe, é quase tão invisível quanto nós”, afirma. E recorda a luta do seu povo: “Nós temos a convicção que os nossos ancestrais foram fundamentais para o desenvolvimento desse país. Nos tempos que vivemos, por mais de 380 anos de escravidão, está mais do que a hora do Estado assumir para si a sua responsabilidade de cuidar do seu povo".
O presidente da Associação Pró-Reintegração Quilombola Paiol de Telha Fundão-Heleodoro, João Trindade Marques, conta que a história de luta do Paiol é de resistência e que a situação atual da comunidade é preocupante. “Eles querem nos tirar de lá, mesmo com um acordo com o Incra, em 2015, que garantiu 50% do território. Esse ano, com o governo Bolsonaro, foi garantido 225 hectares onde 120 famílias trabalham, mas 300 ficaram de fora, porque o espaço é pequeno e não tem lugar para todos”, aponta.
O procurador regional da República, Paulo Gilberto Leivas, lembra que o momento atual é de ataques aos direitos. “Infelizmente hoje existem tendências que esquecem porque o Ministério Público foi criado, que é estar ao lado dos movimentos sociais na luta pelos direitos humanos, pelo direitos dos povos e populações tradicionais. Estamos passando um momento muito difícil no Brasil, de querer passar uma borracha nos direitos que foram conquistados na constituição de 88”.
Ivone Carvalho, funcionária pública do RS e militante quilombola há mais de vinte anos, vê o momento de resistência como histórico na reafirmação do decreto 4887, inclusive para balizar outras comunidades na mesma situação. “Temos o entendimento que terra é vida para os quilombolas, é identidade, é ressignificação, reparação histórica por esse mal que lesa humanidade que foi a escravidão no Brasil”, diz.
O advogado Onir Araújo, da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul, sobre a paralisação dos processos na superintendência do Incra, diz que isso “acaba gerando uma insegurança jurídica muito grande”, o se transforma em ataques. “Muita violência, grilagem, invasões dos territórios, mineradoras, pedreiras, impactos nas comunidades quilombolas. É uma situação bem grave, de acirramento dos conflitos e, ao mesmo tempo, uma paralisia total institucional em relação aos procedimentos de demarcação”. Onir recorda ainda que o quadro vem de muito tempo, mas agora os problemas tem se agravado “com a perda de mecanismo de contrapeso institucional para a garantia desses direitos. O que nos preocupa também é como isso está batendo no poder judiciário”.
Veja o seminário completo aqui: https://www.facebook.com/terradedireitos/videos/2283217681795926/
Conheça um pouco mais do paiol em: https://www.youtube.com/watch?v=Roronmqh7Bc
* Com informações do Terra de Direitos
Edição: Marcelo Ferreira