No dia em que o povo brasileiro comemorava seus 157 anos de independência, um grupo de famílias iniciava a luta por sua própria conquista. Na noite anterior ao 7 de setembro de 1979, na estrada entre as fazendas Macali e Brilhante, em Ronda Alta, na região Norte do Rio Grande do Sul, 36 caminhões boiadeiros e veículos transportavam cerca de 110 famílias Sem Terra, para que essas ocupassem a gleba Macali. “A estrada era de terra vermelha, levantava uma poeira enorme, e uma lua lindíssima clareava o caminho até a Macali”, lembra padre Arnildo, que à época ajudou a organizar as famílias.
A escolha desse dia não foi leviana. Se tratava da véspera de um feriado nacional, o que deixou as autoridades, militares e civis com suas atenções voltadas às festividades. Tal opção facilitou o processo de inserção na fazenda.
Outro fator que favoreceu o sucesso da ocupação naquela noite foi o mapeamento e a análise da estrada que levava ao local em que os Sem Terra ocupariam, ação que fora realizada anteriormente. A partir disso, os organizadores da operação puderam delimitar um esqueleto do local e identificar um espaço mais apropriado para o acampamento. Os ocupantes levaram em consideração tudo, o tempo levado de transição da cidade de Nonoai até Ronda Alta, e de lá até o acampamento. Também mapearam um ponto perto de água, elemento essencial para a permanência dos Sem Terra.
Alcides Souza e Oliveira comenta que um de seus vizinhos o chamou para a luta. Ele e outras pessoas se reuniram em um local previamente combinado, mesmo sem saber onde os levariam. “Chegou o caminhão que ia carregar nós, fomos sem saber onde que era. Quando chegamos ali embaixo, de madrugada, nós começamos a descarregar a mochila e a passar por cima de capim. Quando chegamos na veia de uma sanga, quem tinha machado foi derrubando umas árvores para nós passarmos o rio”, explica.
No dia 7, como forma de demarcar o sucesso da ocupação, os camponeses hastearam a bandeira do Brasil e realizaram a missa da independência, presidida pelo padre Arnildo. “Foi muito animada, bastante canto. O povo gritava: povo unido jamais será vencido”, acrescenta o padre.
Seu Oliveira não esquece como foi o dia seguinte à ocupação. “No outro dia que nós estávamos no lado de cá, cada um começou a se conhecer. Tinha tanta gente, que a gente não sabia nem de onde é que veio aquele pessoal. Fomos nos organizando e tirando as equipes, porque nós não tínhamos conhecimento da luta”, recorda.
Leir Ferreira, filha de Luiz Ferreira, relata a participação do seu pai, já falecido, nessa luta. “Foi um comerciante da Linha Progresso que soube a notícia da ocupação e foi avisar nós. Aí o meu pai foi, porque nós éramos muito pobres, nós perdemos tudo lá nas terras indígenas de Nonoai”, relata. Ela ainda lembra que no dia da ocupação, a única coisa que seu pai levou para se agasalhar foi um pano de malhar feijão.
Leir, que hoje é assentada na Macali, conta que foi para o acampamento em janeiro de 1980. “O meu pai levava comida até Ronda Alta, nas costas, para levar a nós na Linha Pinheiro”, destaca. Ela ainda conta que teve que trabalhar desde criança, pois como eram muito pobres não tinha outro jeito.
Maria Osmarin Fernandes, remanescente das terras indígenas, fala das articulações para a ocupação da Macali. Ela lembra que seu marido esteve inserido em todo o processo e participou das discussões das comissões. Maria comenta que foi para o acampamento um mês depois da ocupação, pois tinha sua filha mais nova de apenas um ano.
Segundo Padre Arnildo, as camponesas foram fundamentais nessa luta. Quando as forças armadas foram desmanchar o acampamento, dias depois, as mulheres e crianças fizeram uma barreira, impedindo a ação dos militares. “Foi uma coisa fortíssima, mas foi uma decisão tão bonita, maravilhosa. E foi o que de fato trouxe a terra para o povo”, ressalta.
A importância de divulgar o recomeço da luta
Após a consolidação da ocupação Macali, era importante divulgar a ação. Foi articulado um grupo de agricultores que se deslocou para a capital do estado, com o intuito de falar com a imprensa, o governador Augusto Amaral de Souza (Arena) e deputados. Segundo Ivaldo Gehler, agrônomo e professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da UFRGS, na segunda-feira, dia 10 de setembro, os acampados começaram a visitar os meios de comunicação. “Fomos à Gaúcha, na Guaíba, e fomos muito bem recebidos. Era uma grande novidade, depois de tantos anos de repressão finalmente alguma coisa nova”, relata. O governador e alguns deputados também se encontraram com os acampados em sua passada por Porto Alegre.
O agrônomo recorda a expectativa gerada após o anúncio nas mídias. “A opinião pública passou a defender a ação. As próprias rádios e televisões começaram a anunciar como uma novidade boa, pois a sociedade viu a ocupação como o primeiro passo para o fim da ditadura. A sociedade precisava de democratização e voltar a se mobilizar, a ser protagonista da história”, diz Gehler.
Ocupação Brilhante: a luta continua
Dias depois da ocupação da Macali, mais de 70 famílias ocuparam a gleba Brilhante. “Nós alugamos um caminhão que puxa cavalo e enchemos de gente. Ele largou nós com as trouxas nas costas e fomos atorando as valetas no escuro”, conta um dos líderes camponeses da ação, Lucival Brachak. “Demoramos para chegar lá. Era longe, de noite, no escuro, pulando cerca. Eram 10, 12 fios de arame cada cerca”, relata o Sem Terra. “A polícia veio e nós enfrentamos o coronel. Nós não saímos de lá”, recorda.
Nos meses seguintes, o número de famílias acampadas nas terras da Brilhante chegava a 150, segundo o agrônomo Gehlen. Inicialmente o governo escolheu ignorar essa segunda ocupação. No entanto, com a pressão dos camponeses e a opinião pública, o poder público se viu obrigado a conceder terra, assistência social e alimentos.
Na gleba da Brilhante, o fato que auxiliou no reconhecimento da ocupação foi a colheita do milho, o qual foi distribuído para os acampados. “Foi um gesto importante do Estado, porque foi uma vitória deles, como que reconhecendo que aquela terra pertencia à sociedade do Rio Grande do Sul e não a um grande proprietário de terra”, menciona Gehlen. Ele conta ainda que, além disso, o dinheiro arrecadado com a venda do milho pelo antigo arrendatário da Fazenda Brilhante, Ary Dionísio Dalmolin, fora distribuído entre os acampados em forma de bens solicitados pelos Sem Terra.
Confira as reportagens anteriores do especial 40 anos da ocupação Macali e Brilhante
- A semente do MST: 40 anos da ocupação Macali e Brilhante
Edição: Da Página do MST