Rio Grande do Sul

ENTREVISTA

Francisco Marshall: “Temos na presidência uma figura incapaz, seriamente perturbada"

Para o doutor em história, o governo promove tudo o que há de ruim, e tudo que há de ruim sempre será contra a cultura

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Francisco Marshall é pós-doutor na Princeton University (EUA) e na Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg (Alemanha)
Francisco Marshall é pós-doutor na Princeton University (EUA) e na Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg (Alemanha) - Fotos: Igor Sperotto

Nessa entrevista, Francisco Marshall – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, (USP), pós-doutor na Princeton University (NJ, EUA, 1998) e na Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg (Alemanha, 2008-9) – analisa a crise cultural na qual estamos imersos, relembrando o ataque à exposição Queermuseu, cujo cancelamento pelo Santander Cultural, em Porto Alegre, completa dois anos neste mês de setembro, relacionando-a ao desmonte do estado de normalidade ética, presente também em outro evento recente, de agosto de 2019, quando um professor do Colégio Rosário apresentou um vídeo do sociólogo Sergio Adorno, em que este discute a violência, e cujo conteúdo levou dois alunos às vias de fato, culminando na demissão do docente, atitude por ele condenada. Num contexto mais amplo, o Professor Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul fala do papel da arte e da educação como norteadores civilizatórios, comenta a “terrível onda ideológica que hostiliza a palavra público” e tece algumas considerações sobre os atuais gestores municipal, estadual e federal. A degradação da profissão do professor, discursos de ódio, falso moralismo, planejamento urbano e filantropia cultural também foram questões levantadas nesta entrevista e discutidas por Marshall, para quem “a cultura é alvo de uma intolerância cuja principal justificativa é de cunho moralista”, lembrando que os pentecostais “pegam os elementos estéticos da cultura para enlevo e doutrinação religiosa”.

Eis a entrevista:

1 – Professor Marshall, a partir das perspectivas educacional e cultural, como o senhor avalia o Brasil contemporâneo?

Marshall: O país está doente, e esta doença afeta centralmente a cultura, que é a capacidade de interpretação da identidade, da memória, do patrimônio, da imaginação, da fantasia e, sobretudo, de produção de símbolos que permitem explicar de modo complexo, não de modo simplificado, o mundo em que vivemos e a condição humana. E todos esses elementos, que constituem o mundo da cultura, são hoje alvos de um estranhamento programático que tem vários focos, todos eles integrados numa ação nociva, numa postura ofensiva contra a cultura. Isso tem acontecido há alguns anos, mas com grande intensidade desde a crise do Queermuseu (em setembro de 2017), quando estes grupos realmente vieram à tona, como o “escola sem partido” e outros movimentos de índole confessional que já vinham dando sinais desse avanço. Com o governo atual eles se sentiram motivados, por um trinfulalismo, a avançar ainda mais numa agenda de ofensas, de ataques à cultura. Então esses grupos e essas ações vêm inclusive do governo, porque temos na presidência uma figura incapaz, seriamente perturbada, e, portanto, promotora de tudo o que há de ruim, e tudo que há de ruim sempre será contra a cultura. E o fato é que isso não é individualizado. A sociedade está doente, e essa doença é uma doença cultural, uma doença que produz incapacidade de discernimento, um dos elementos fundamentais da cultura. Discernir é um ato fundamental, é ele que inaugura o pensamento racional: discernir – de separar as coisas, separar causa e efeito –, desconectar os fenômenos tentando explicá-los. O discernimento está seriamente transtornado.

2 – Queermuseu como um exemplo de ataque às artes, e na educação?

Marshall: O que ocorreu no início de agosto diante do Colégio Rosário, aqui em Porto Alegre, foi um fato muito grave, sobretudo como um sintoma disso. Numa aula do colégio, onde um professor substituto apresentou um vídeo muito esclarecedor do sociólogo Sergio Adorno, discutindo a violência, os alunos se engalfinharam, lutaram. Uma cena horrível. Isso foi filmado, viralizou, e a escola tomou atitudes erradas. Então um destes grupos que são sintomas da crise cultural, pequeno, mas ativo, foi com faixas atacar a escola como se esta marxista fosse. E quando isso é divulgado nas redes, vem um enxame de manifestações doentias, parte robóticas e parte realmente de mentes doentias, com julgamentos prontos, sem conhecer o fato, com equívocos medonhos como se fossem verdades, e isso é parte sintomática de tudo o que vivemos hoje da crise simbólica na cultura.

3 – Existe uma explicação para que chegássemos a este ponto?

Marshall: No Brasil, há causas particulares. No globo, há fatos que também se manifestam de diferentes maneiras nas nações. Os transtornos da sociedade contemporânea geraram quadros similares em muitas nações, como na Itália, nos Estados Unidos, na Grécia, na Inglaterra, e que mostram que não é apenas um quadro local, mas que há uma voga. Isso é o mais preocupante: o que provocou essa voga de xenofobia, de intolerância, de recuo ético, recuo da pós-modernidade, ataques éticos à pós-modernidade, especialmente o que chamam, como se demônio fosse, de politicamente correto, que é um código ético muito razoável, muito decente e muito bonito e que vingou dos anos 80 para cá, mas que passou a ser sinônimo de um diapasão ideológico. E não é. É apenas ético. Num quadro global, existe esse movimento.

Creio que hoje há uma macro causa que é um estágio avançado do mega capital, que percebeu na fragilidade dos Estados nacionais contemporâneos uma chance de desmontá-los, e, com isso, obter o que é o melhor quinhão pro mega capital, sobretudo financeiro, mas parte de um mega capital industrial conectado ao financeiro. Não tem nada a ver com a burguesia industrial nacional, que é refém desse grupo. E para esse grupo a desregulamentação absoluta é favorável: desmontar os direitos sociais, trabalhistas, ambientais, para que a rapinagem e a voracidade prosperem sem limites. Que a floresta amazônica seja unicamente fonte de matéria prima e que o trabalho seja unicamente fonte de força a ser explorada, etc.

A explicação que eu melhor encontro para o plano global é essa agressividade rapineira do mega capital, que é diferente do capital propriamente dito. É outra dimensão, que é resultado avançado da globalização, do neoliberalismo e do que ela fez dos anos noventa para cá. Se nós formos desconstruir tudo o que está ocorrendo e avançarmos em direção a uma causa mais profunda, veremos ali o grande beneficiário de tudo o que está acontecendo com esse desmonte do estado de normalidade ética, que é o estado de pós-guerra, que se criou com os remorsos da segunda guerra e que produziu defesas humanísticas, via ONU, UNESCO, OMS, OIT. Isso tudo que hoje em dia é alvo, e será desmontado.

"Creio que hoje há uma macro causa que é um estágio avançado do mega capital" 

4 – Quais são as perspectivas para os próximos anos? São as piores possíveis ou a gente pode pensar numa mudança, numa virada?

Marshall: Há resistência e há fatores animadores, novos inclusive, sobretudo na juventude que não se rendeu, que tem uma postura pública e que segue muito firme na convicção ética, que produziu as principais mudanças e que recusa majoritariamente esse pacote. Eu te diria que esse é um elemento promissor. Complementando o que eu te dizia na resposta anterior – falando do quadro global – no quadro nacional há o avanço terrível da ambição confessional, pentecostal, que é um sério problema para a cultura, porque eles têm uma visão paupérrima e nociva da realidade, não só pela visão religiosa, que afinal de contas pode ter uma dimensão mística, ética. É possível religião e sociedade conviverem numa boa, mas não para quem acha que isso tem que ser um fundamento, uma regra impositiva. E os pentecostais assim pensam. Então houve um descuido desse caso e um erro estratégico da inteligência, da cultura, da esquerda brasileira, em manter cautela com o discurso religioso. Nós tivemos campos do pensamento da ação social-religiosa muito avançados, muito engajados, e deu-se a ilusão de que ali havia um avanço, e junto vinha o pensamento teológico, heteronômico, a força da fé presidindo o mundo, que agora é capitalizado pelas pentecostais, e que se torna uma força extremamente nociva, porque já é fiel da balança há muito tempo. E isso repercute fortemente sobre as questões comportamentais, de relação entre a ciência e a sociedade, a educação e, por fim, a cultura, que é alvo de uma intolerância cuja principal justificativa é de cunho moralista. E aí nós temos um fator local cuja similaridade global mais próxima talvez seja algumas correntes fundamentalistas do islamismo, ou correntes de extrema direita que tem em alguns lugares da Europa. E diante disso nós não criamos ainda, culturalmente, um discurso suficiente para desmontar essa força pentecostal muito forte entre a população economicamente e culturalmente desguarnecida. Eles ocuparam e conquistaram um papel outrora da igreja católica, inclusive com uma variedade fantástica de designações, denominações religiosas impressionantes que cativaram e ocuparam de fato um espaço na cidade. E ali nós não temos, nós que produzimos cultura – museu, ballet, teatro, música, cinema, educação, literatura – não temos uma porta de entrada, é muito difícil. Mas eles pegam os elementos estéticos da cultura para enlevo e doutrinação religiosa. Aí é um flanco a ser elaborado, e não está sendo. Nós estamos atônitos com as questões políticas que são assombrosas.

5 – Como isso poderia ser feito?

Marshall: Ainda não sei. Em primeiro lugar nós temos que elaborar, formular a equação. Por exemplo: os grupos comportamentais que são diretamente atingidos por essa voga de moralismo conservador não podem deixar de perceber que um gay pentecostal é uma contradição inaceitável, porque o movimento pentecostal em si é hostil à população gay. Igualmente outros grupos sociais que tem a sua posição dentro de um horizonte tradicional como alteridade ou como divergência ou minoria. Quando isso acontece, ali tem algo a ser elaborado. Penso que esses grupos que são mais atingidos, também são os grupos mais sensíveis a uma mudança que tem que se tornar linguagem – música, cinema, teatro –, e aí o problema realmente é da permeabilidade, ou quanto essa produção cultural poderá chegar naquele universo, na cidade crente.

6 – Como explicar que pessoas esclarecidas apoiem indivíduos que pregam um falso moralismo e ajudem a propagar discursos de ódio?

Marshall: Eu creio que há dois fatores: em primeiro lugar é a doença cultural a que me referi antes e que merece análise. Merece uma psicanálise cultural, não dos indivíduos, mas da cultura. O que permitiu isso? Há um efeito de fetiche desse cenário atual que fez emergirem monstros, lembrando o que Freud diz em “Mal estar da civilização” e em vários campos de sua obra: somos compostos de Eros e Thanatos. Thanatos tem o sentido mórbido, o desejo de matar. Não é a morte que se aproxima, somos nós como letais atuando no mundo. E a cultura trata de examinar, compor. E eu acredito que um dos principais pontos da crise cultural atual é que ela foi capaz de desencadear o que outrora era vergonhoso, inaceitável, mas que estava lá, e que está em todos, que são impulsos mórbidos letais, irracionais, bárbaros, e que se conectam facilmente com outros cacoetes de intolerância, de irracionalidade. Quando esse estado de ser se sentiu autorizado a ir ao espaço público e ali triunfou, ele adquiriu uma felicidade, uma endorfina que é irresistível. Você falou em pessoas bem esclarecidas, eu tenho um amigo que é aposentado da diplomacia, uma pessoa de imensa cultura, homossexual, com uma vida transtornada por problemas devido a essa sua condição. Como é que uma pessoa dessas se associa ao discurso de ódio intolerante que o tem como alvo também? Então, é porque o poder de mobilização, de compulsão, de ativação desse símbolo cultural do ódio é superior ao sentimento/pensamento de identidade desse sujeito. E eles abrem mão do sentimento de identidade que sempre foi problemático, sempre foi transtornado, sempre foi um elemento de crise, para se reconfortar naquela porção que não precisa de justificativa, ela pode se exercer como irracionalidade. Aí está o nosso principal foco, conseguir descrever, denunciar e formular como um quadro o que compõe esse mundo de irracionalidade que envolve a intolerância, que envolve o desejo de matar quem discorda. Descrever isso claramente para que as pessoas tenham o que a tragédia grega descreveu como anagnorisis, o cair da ficha, um momento de reconhecimento, sair do transe: “Eu fiz isso”, “como eu fui capaz de fazer isso?”. Como as famílias alemãs, que não por serem más, mas por serem cativas de um fetiche do ódio, fizeram o que nunca seria aceitável. E muitos, lá pelas tantas, pensaram que a própria sociedade alemã teve que cair na real: “Como é que nós fizemos isso?”.

7 – Estamos falando de ódio, e há pouco o senhor trouxe o exemplo do que aconteceu no Colégio Rosário. Na sua opinião, qual o objetivo de grupos políticos que se colocam contra os professores?

Marshall: Há muito tempo os professores deixaram de gozar do prestígio que já tiveram no passado, quando eram reconhecidos honorificamente. E eu, que sou professor, na minha vida inteira desfrutei muito dessa respeitabilidade, das pessoas me tratarem de um modo lisonjeiro e honroso. O professor tem uma alegria imensa de ser chamado de professor. Acho uma coisa amabilíssima, como se fosse um título muito melhor que um doutor, pós-doutor, ou o que quer que seja: conde, duque, marquês. Acho que professor é o título mais nobre, que também faz com que as pessoas vejam ali um caminho para que todos possam crescer positivamente. Mas isso foi desmontado num cenário econômico. A degradação da profissão do professor, em consequências políticas, foi uma degradação do seu prestígio social. Os professores deixaram de ser capazes de circular no meio cultural, de viajar, de comprar livros, de se apresentar condignamente, porque a renda se tornou pavorosamente limitadora. Paralelamente a isso há esse cenário de estigmatização da consciência, da arte, da cultura. As didáticas avançadas – isso se aprende, é do método – elas tratam de como produzir confrontos, a dialética é isso, a aprendizagem construtivista é feita disso. Vygotsky e Emilia Ferreiro deram uma formulação que se tornou método, e lá por trás está o Piaget, juntando isso dentro de uma visão construtivista, mas, entendendo que o conflito é um elemento de crescimento e aprendizagem. Isso significa que a escola não está lá apenas para chancelar e afirmar, como o faz a igreja, como muitas vezes querem fazer os pais, os veículos de imprensa, a área editorial dos órgãos de comunicação. E a escola será melhor sempre que trabalhar com o confronto, e esse confronto, a partir desse foco cultural de intolerância, é visto como representação doutrinadora, panfletária, de propaganda do que está sendo examinado.

8 – Pode nos dar um exemplo?

Marshall: Na exposição Queermuseu estava sim em exame, no quadro da Adriana Varejão, a relação entre colonialismo e sexualidade, dominação, racismo. Um painel muito provocativo, como são as questões eróticas, mas ali estão apresentadas como um problema que o Brasil tem que examinar. Temos que nos confrontar com isso. Então os bárbaros – nesse caso é a palavra que lhes cabe – entendiam a arte como propaganda, como se elas (as obras) estivessem preconizando aquelas atitudes, quando na verdade elas estavam examinando para condená-las, bem como outro ambiente que lá causou estranhamento e que examinava as estigmatizações eróticas infanto-juvenis e as reações a isso. E é isso que arte tem que fazer, é isso que a cultura tem que fazer, é isso que o professor tem que fazer, colocar em tela, representar uma vez mais. É isso que a tragédia grega fez, e por isso foi e é ainda hoje a maior elaboração cultural da história da humanidade, porque foi capaz de transformar em ação, ideia, fala, dança, símbolo, com uma poesia maravilhosa, a tensão cultural, às vezes insolúvel. E a cultura tem que lidar com isso, de que algumas questões da condição humana, da condição do mundo, são insolúveis.

9 – Como os professores podem contribuir para reverter a falta de apreço pelo saber e reter o culto à ignorância entre os jovens?

Marshall: Veja, no caso do Colégio Rosário, vamos tomá-los agora como sintoma. Pobres dos jovens que passaram por isso, mas claro que por trás deles há ambientes afetivos muito intensos que os compeliram em sala de aula a chegarem às vias de fato. Podem ter outros fatores enfim, até pessoais, opções pessoais, mas eles reproduzem um quadro cultural familiar tenso, tributário daquela polarização e daquele ódio que cresceu, e com isso já não são alunos que estão plenamente integrados no espírito que o professor pretende instaurar em aula. Então cabe sim aos professores declarar de modo mais claro e transparente o que essa nave sala de aula, essa nave escola ou universidade realiza. Para onde vamos? como vamos? Cabe sim declarar o espaço de liberdade, de tensão, de polêmica, como constitutivo do ambiente escolar, mas, sobretudo cabe se associar aos jovens por intuição, por sensibilidade, por espontaneidade, por contemporaneidade, criando uma osmose simbólica cultural, por leituras, e que estão engajados no que importa: uma renovação cultural comportamental. Que esses jovens entendam a escola como seu cenário. A escola não pode criar estranhamentos que intimidem os jovens na sua expressão de radar da cultura, de sensibilidade da cultura. E, logo, toda a sociedade civil – pais, intelectuais, dirigentes, jornalistas –, todos que operam publicamente com opiniões, imagens e presença, não podem permitir a intimidação dos jovens.

10 – Por que os gestores públicos não priorizam investimentos que permitam transformar nossas cidades em lugares melhores para viver?

Marshall: Há uma terrível onda ideológica que hostiliza a palavra “público”. Onde houver a palavra “público”, essa ideologia e seus agentes vão atacar como se ali fosse um cenário a ser convertido para um mundo de eficiência privado. Há ali um Mercado Público? Então vamos privatizar. Praça Pública? Vamos privatizar. Amparados em uma promessa ideológica de que a gestão privada é mais eficiente – e ela tem a seu favor uma percepção em muitos casos correta, ou, digamos, justificável, de que a gestão pública deixou a desejar em alguns campos – prosperou na sociedade civil e na opinião pública um reconhecimento de que o Estado erra ou tem instrumentos de gestão inferiores ao privado. E isso tem que ser entendido a partir do que promoveu a ideologia privatista. O fato é que hoje ela pensa o contrário do que deve pensar o gestor, que é como promover a esfera pública, como criar equipamentos urbanos, cenários de encontro, de promoção da cultura, da arte, do lazer públicos, e com isso melhorar a qualidade de vida como um todo, com segurança, com desempenho econômico. Numa esfera pública desenvolvida, com circulação, com gente, com criação, todos os indicadores sociais melhoram.

"Há uma terrível onda ideológica que hostiliza a palavra 'público'" 

11 – Como isso pode ser feito?

Marshall: Você pode iniciar esse processo por vários caminhos. Desmontando a presença poderosa do mundo automotor, como fizeram em Nova Iorque, onde num arrojo de natureza ética eles simplesmente transformaram em calçadão um dos principais nós urbanísticos do planeta, a Times Square. Botaram cadeiras de praia e fizeram ali uma conquista do espaço público no coração da maior metrópole do mundo. Todas as apostas em contrário diziam que isso iria gerar o caos, trancar o trânsito, mas deu-se exatamente o que se pretendia: a instauração de um ambiente de fruição e gozo. Então os nossos gestores, aqui no caso do Sul, o prefeito de Porto Alegre (Nelson Marchezan Júnior) e o governador do Estado (Eduardo Leite), ambos são da mesma ideologia, mas o prefeito muito limitado, muito incapaz de tudo, de estudar, de compreender, de criar, de agir sensatamente, de ter presença, de dialogar. Ele é incapaz de tudo. Diante disso, a força do pacote pronto ideológico se torna a única chance de ação dele, e foi assim que ele começou o seu governo e assim ele o realiza. E no governo do Estado, o Leite é um sujeito mais cosmopolita, mais polido, esclarecido, afeito ao diálogo, porém em um ninho em que há esse fetiche ideológico, e que é um fetiche muitas vezes insensato também diante da justificativa que eles apresentam da eficiência econômica, por exemplo. Muitas vezes esse caminho privatista é pior para os negócios privados, pior para a sociedade e pior para o Estado. Por exemplo, quando uma função inatamente pública é solapada, e aquele solapamento produz uma necrose no tecido social, econômico e urbano porque deixa de permitir o desempenho de algo que funciona quando é público.

12 – No que diz respeito ao modo de pensar e de investir no bem estar social e na arte, existe uma diferença na forma de entender essas questões entre os empresários brasileiros e os de outros países?

Marshall: Vamos eleger o que têm sido referência para o Brasil. Em primeiro lugar, o caso norte-americano. Pela imponência imperial e tudo o que representa em termos de colonização cultural e de modelo. Lá nós temos um valor da cultura e da filantropia que nunca existiu no Brasil. Tu contas nos dedos os empresários que praticam filantropia cultural no Brasil. Doutor José Mindlin, saudoso, falecido, pessoa extraordinária, veja o que ele fez. O Instituto Moreira Salles, da família Moreira Salles, a família Klabim. A gente tem que correr atrás para afinal achar menos de cinco grandes fortunas brasileiras empenhadas de fato na filantropia cultural. Nos Estados Unidos a classe média quer praticar filantropia cultural, quer doar para a orquestra da cidadezinha onde vive, quer participar. Existe uma noção ética, que em última instância foi o que tinha em mente o Sérgio Paulo Rouanet, ao criar a Lei do Mecenato. Ele queria criar uma cultura do mecenato, e por isso criou um incentivo fiscal para tanto. Infelizmente, de um recurso de estímulo, o que prosperou foi um uso comercial pelos setores de marketing das grandes empresas, a propaganda por via cultural, e não a formação de uma cultura da filantropia. Então eu acho que esse é um elemento que a cultura norte-americana tem e que no tempo em que eu morei lá e nas visitas que fiz e faço sempre me impressionam. Há realmente uma ética da filantropia. Claro, parte da esquerda brasileira não quer nem ouvir falar disso porque não pode aceitar que existe um elemento exemplar na cultura norte-americana. Tem que ser condenada pelo imperialismo e outros erros. Mas não é assim, há esse elemento que nos faz grande falta aqui. Então o nosso empresário, ele não participa da vida cultural. Quando participa, é vindo de cima para baixo, para exercer cargos honoríficos, dirigindo, por designação, institutos, órgãos, fundações, mas não está envolvido diretamente, não consegue perceber o valor da cultura, da densidade cultural. Há uma alienação. A principal inclusão que falta no Brasil, além da inclusão dos benefícios da qualidade de vida da população carente, é a inclusão dessa elite numa ética que faça sentido também para essa elite. Porque essa elite poderia ser beneficiada por uma maior harmonia social que é produzida por uma visão mais rica da sociedade em que a filantropia cultural tem sentido. Isso existe no caso americano. E no Brasil há uma carência enorme.

13 – Nesse sentido, temos alguma experiência positiva no Rio Grande do Sul?

Marshall: Aqui no RS uma parte da elite empresarial se mobilizou para implantar o Iberê Camargo, e o fez, num dos melhores lugares que temos aqui no hemisfério sul, num lugar maravilhoso, exemplar. No momento em que a realidade fiscal atuou contra a contribuição dos empresários, eles sumiram do mapa, e teve que vir uma solução de fora: entrou o Itaú Cultural para resolver um problema que foi a deserção dessa pequena elite local. Por que ela conseguia promover essa obra de muitos milhões que foi realizada ali? porque tinha isenção fiscal. Então a presença cultural de algumas grandes famílias, sim, é positiva, gerou esse resultado. Mas em última instância, antes de mudar o seu status quo, a sua qualidade de vida, ela preserva isso tudo, e deixaram lá o museu à deriva, que entrou numa crise muito séria pouco tempo atrás, e que seria facilmente sanada com um percentual irrisório do que efetivamente possuem essas grandes famílias. Mas como eles só aceitam contribuir com incentivo fiscal, não temos um elemento cultural, temos um elemento estratégico, corporativo. São colecionadores de arte, que frequentam museus, bibliotecas, concertos. Tu vais na casa deles e fica com a sensação de ter entrado num museu, num lugar lindo, porém fechados no seu mundo. Mas na função pública, falta o quê? Um sentido genuíno de filantropia e de contribuição. E esse sentimento de filantropia pode ser descrito dedutivamente como parte de uma lógica social em favor da harmonia, ele não é espiritual, ele é genético também. Ele produz condições para um modo de convívio favorável a todos em sociedade.

Outro elemento que nos faz falta na relação entre empresários e a cultura é realmente haver – existe isso no Brasil, mas não predominou ainda – uma ousadia maior no planejamento e na realização cultural, integrando elementos dinâmicos da economia, que são o principal elemento da economia global da atualidade: o turismo. O Brasil é negligente na articulação entre turismo, educação e cultura. E essa é a principal forma com que a cultura se sustenta no capitalismo contemporâneo. Exceto, claro, mass mídia, indústria cultural de massa. Mas vamos deixar de lado e vamos pensar a Cultura que pode realmente fazer a diferença, e ela tem que estar articulada com educação e turismo. E o turismo é um caminho de capital de realizações imenso.

14 – Como a História da Arte contribui para a produção de conhecimento e organização da sociedade?

Marshall: Essa questão exige que a gente defina o que é arte, porque a historia da arte é para nós atualizarmos o nosso mundo. O que constituiu historicamente arte. Não apenas para contemplarmos as belezas do passado, mas para trazermos de lá os elementos produtivos dessa inteligência ali realizada. Eu entendo arte como produção de símbolos. A arte toma do mundo, da vida, da sociedade, das imagens, signos que são compartilhados por todos, signos acústicos, visuais, gestuais, semântica muito variada, porém, transforma com poética, acrescenta variações, fragilidades, fronteiras. A arte não é um emblema, não é logo, um discurso impositivo, propaganda. A arte realmente converte em símbolo, promove questões. O estudo da história da arte é compreendermos como se produziu ao longo dos séculos um repertório de questões e de linguagens transmitidas por meio da arte e que seguem ativas para, atualizadas, pensarmos o que importa: a condição humana, a condição do mundo, as suas fronteiras, as suas possibilidades. Há muitos elementos da arte: as questões técnicas, do aprendizado, da produção, da difusão. O sistema da arte é um sistema complexo, envolve uma rede de ações sociais, instituições, serviços privados e públicos, de formação de pessoas, de plateias, de galerias, de crítica, de museus, de escola. O sistema da arte é bem complexo, como Canclini e outros autores descrevem. Isso é um fato. Agora, dentro do “sistema da arte” está “a arte”. E esse é o momento de fazermos a diferença entre arte e entretenimento. A arte se vale das qualidades de enlevo que estão também no entretenimento. A arte é envolvente, é estética. Vais num show, num concerto, no teatro, num ballet, e terás um enlevo estético e sensual. Será arte quando ali estiverem símbolos examinando, representando, tencionando, provocando identidades, desacomodando, elaborando de alguma maneira. Se com música, dança, a pessoa for lá sacudir o corpo e se entreter por um tempo e não passar pelo processo de elaboração simbólica, então não houve arte. É difícil diagnosticar isso, mas o fato é esse. Então o papel da arte segue sendo esse: de abrir caminhos, de representar a sociedade, e é por isso que nós olhamos para o passado. E claro, a história política é um território fundamental, conhecermos a evolução geopolítica, o Estado, isso tudo é fundamental. Mas o que é memorável é o que foi transformado em símbolo, em obras primas. Em arte, isso é o que sobrevive, é o que brilha, isso é o que é perpetuado. Mimética e consagradoramente as pessoas ritualizando essa reaparição da arte.

15 – Estamos falando sobre o que a arte provoca. Por que a arte e os artistas têm provocado medo?

Marshall: Ao longo do século XX, cresceram várias reações conservadoras diante do que as vanguardas fizeram, mas essa situação de medo dos artistas é recente. Até meados do século XIX, talvez até o final do século XIX, não havia isso. Se houvesse, era diante de algum quadro muito específico, de um iconoclasta. Pelo contrário, o que existia era uma ambição de arte, um desejo de arte por todos, pela elite, pelo Estado, pela educação, pela sociedade. Então o que nós falamos está ligado ao que ocorreu desde o início do século XX, ao expressionismo, ao dadaísmo, às correntes de vanguarda do século XX que desmontaram o poder mimético institucionalizado como autoridade, que são os modelos clássicos, e nisso criaram um ambiente de dificuldade para a sociedade que passa a ter ali um desafio intelectual um pouco maior. Não que não houvesse antes. Ler um Botticelli sempre exigiu literatura, filosofia, mas ao mesmo tempo ele era mediado pela beleza, entregava aquelas formas lindas; o seu destino eram leitores inteligentes, cultos, místicos. Havia uma exigência de inteligência. Houve ao longo de toda a história da arte. Porém, ao longo do século XX ela se tornou uma exigência muito mais elaborada, que envolve aceitarmos denúncias contra autoridades, contra a tradição, como parte da contemporaneidade, e assim desmontar o corpo, o espaço, a narrativa, a forma, a matéria, gerar arte imaterial. Isso tudo exige demais do homem mediano. Vamos colocar agora esse quadro em dimensões estatísticas: é pequeno, em termos de percentuais da sociedade, o número daqueles capazes de compreender essa provocação toda.

Essa arte se fortaleceu muito no seu próprio umbigo narcísico, e com isso ela criou autojustificativas suficientes para o sistema e insuficientes para a sociedade. E certa alienação curatorial que foi denunciada dentro do seu próprio sistema, e que num enlevo narcísico com as suas próprias questões perdeu os caminhos com a educação, mais fáceis de construir na Europa e nos EUA, onde há museus contemporâneos onde a educação está a eles ligada. Mas fora desses cenários, com as sociedades tradicionais, lá também já é difícil.

Desse estranhamento sobrevive uma dificuldade do homem médio de entender que ali realmente existem questões que não são simples. Que questões são essas? São sobre o corpo, meio ambiente, sexo, dinheiro, energia, poder. Isso tudo é examinado pela arte contemporânea como nunca antes foi. E aqui dou a mão à palmatória para reconhecer o efeito cultural do que foi e têm sido a série histórica das Bienais Visuais do Mercosul, principal promotor de contemporaneidade cultural no nosso universo nos últimos vinte e tantos anos, onde a gente consegue testemunhar isso que tu perguntastes, esse medo ou estranhamento de linguagens, de dificuldade em entender a ironia, o sarcasmo, a insolência, a distância e a diferença de artistas que não eram exímios no desenho, na fórmula acadêmica: juntavam tampinhas, cinzas, material industrial para produzir instalações com luz, com forma e com cor, e com isso criando dramaturgias e cenografias estéticas exigentes. Tão exigentes quanto o foi a arte clássica. Então isso existe permanentemente desde o século XX, o desafio da aquisição de um código, e a arte é quem tem que fornecer os instrumentos para essa leitura. E pode, e faz.

A isso se acrescenta outro fator que comentamos no início da entrevista, relativo ao reacionarismo conservador, que decide, valendo-se desse estranhamento que há com a arte – a entartete kunst, a arte degenerada, no dizer da propaganda nazista, que no fim das contas é o sentimento de que essas pessoas não conseguem entrar no discurso da arte – que a arte é realmente degenerada, que ela é degradante e que ela degrada a condição humana. Na visão deles não é a condição humana que está degradada, é a arte que está degradando a condição humana. E desse estranhamento surge um caminho para que uma linguagem extremamente simplória em todos sentidos – formal e conceitual – seja a plataforma de ataque à arte atual.

16 – O que torna uma sociedade civilizada e como conquistá-la?

Marshall: A sociedade civilizada compreende o conceito grego de isonomia. Os próprios gregos lutaram para desenvolvê-la. Estou falando do surgimento de um conceito em que se pensam normas que se equalizam sem sonegar as diferenças, mas permitem um ambiente de harmonia social. E harmonia, volto ao grego, significa construção. É o nome da jangada em que Odiceu consegue escapar (meio a contragosto). Ele estava numa vida erótica maravilhosa com Calipso, uma ninfa belíssima, e os deuses decidem que ele deve voltar a Ítaca. E ele então junta uns troncos, ata aqueles troncos e parte. Aquela jangada se chama Harmonia. E harmonia significa algo que está atado e que nos permite sobreviver. Isso é a sociedade. E quando a sociedade se dilacera ninguém sobrevive. Pode haver uma ilusão de sobrevivência, com um enorme custo afetivo e moral: as pessoas viverem fechadas, lacrarem seus modos de vida, seus apartamentos, ou viver alienadas em condomínios, com cercas e grades. Tudo sintoma de uma falta de harmonia. E a harmonia, claro, tem pré-condições socioeconômicas que devem ser conhecidas. A renda do trabalho tem que ser suficiente para permitir um caminho de desenvolvimento. E o principal fator crítico da história econômica brasileira é que o valor do trabalho é degradado. Nós não conseguimos, pelo trabalho, motivar os emergentes a formular um plano de vida ascensional, porque vão esbarrar numa fronteira muito curta e muito próxima de ascensão social pelo trabalho. Então o mito liberal não é suficiente para promover isso. Ele promove depois uma série de problemas, frustrações e atalhos. Então o problema da renda interfere, e nele há ainda o estigma colonial brasileiro de uma burguesia que não soube se constituir como tal. Não soube entender que a produção de uma classe média dinâmica e consumidora é condição de uma sociedade capitalista burguesa, e que o seu fator essencial é o valor do trabalho. E o trabalho no Brasil é historicamente aviltado. 

Tivemos nos anos recentes, de 2002 para cá, um vetor de reversão desse quadro, via ampliação do salário mínimo, ampliação do financiamento do pequeno e médio empreendedor e produtor, rural e urbano, que foram privilegiados com políticas públicas de financiamento, e isso ajudou muito o crescimento socioeconômico nesse período, mas olha o preço que se pagou por isso. Isso insultou um sentimento de território. Os aeroportos passaram a ser frequentados por gente de chinelo de dedos e sacolas ao invés de malas. E por trás disso veio esse ranço ideológico. E o que isso gera? Uma sociedade que não produz harmonia, mas produz um ninho de antiéticas, de comportamentos que são antiéticos, porque o seu resultado é a violência, como isso que ocorreu recentemente no café La Croissanterie, no Shopping Iguatemi, em que o dono do local colocou uma placa da rua Marielle Franco, uma homenagem à uma mulher defensora dos direitos humanos, vítima de uma inaceitável violência, em que ele, sem panfletagem, fez ali o que todo brasileiro deveria fazer: uma homenagem a um vulto histórico muito importante e violado gravemente. Então, novamente num sintoma da crise cultural, duas senhoras, vendo aquilo, entraram em surto, aos berros: “O que é isso? Minha nossa! Como pode isso?”. Os atendentes foram lá averiguar, porque achavam que tinha uma lagartixa na comida, e elas prosseguiram: “Isso é inaceitável, nós estamos aqui no Shopping Iguatemi, isso aqui é um lugar da burguesia, da elite, aqui é um lugar em que nós viemos para estarmos no nosso mundo, para vivermos bem. Isso é uma placa para negro, para empregada, para pobre, isso poderia ser colocado lá na Cidade Baixa, mas não aqui no Shopping Iguatemi. Essa negra, vulgar, pobre”. Teve um surto maníaco, e com isso voltamos a tudo o que iniciou a nossa conversa: os sintomas de uma doença cultural. E o dono do La Croissanterie, um jovem empresário, teve que remover a homenagem à Marielle Franco do seu estabelecimento no shopping porque o resultado foi uma crise de imensa proporção. Mas o que tem na cabeça uma pessoa que fala isso em público e que se sentiu autorizada a fazê-lo. Tu acha que um alemão faria isso? Nunca! Se tu contas uma história dessas na Alemanha irão te dizer: Mas que filme de horror é esse?

Edição: Cristiano Goldschmidt