“Se vamos falar de Bolívar, como desassociar da imagem do livro? Bolívar carrega o apelido de Livreiro, porque todos os livros se sentem um pouco seus filhos. Ele os carrega pela vida, faz da sua vida a própria história do livro. Ao conhecê-lo, vi a poesia na história dos livros que conta. A história que passou e a história que virá. Ele é a letra na palavra, a palavra no verbo ler.” Nos versos da escritora Jane Lucas, doses de afeto ao Bolívar Gomes de Almeida, o Livreiro. E é neste clima de encantamento que, nesta sexta-feira (06/9) no Sindicato dos Bancários (POA), ele comemora seus 70 anos de vida com apresentação especial da dupla Vô Vivendo & Vô Fazendo, da qual faz parte.
Formado em Ciências Sociais e História, também é professor de Espanhol, com conhecimento e vivência profunda da América Latina. É considerado por uma legião de leitores das mais diversas áreas um ícone da cultura das letras em Porto Alegre, quiçá no Rio Grande do Sul. “É um autêntico livreiro de rua. O que ele faz na vida é visitar gente pensante da cidade, conversar e ajudar a encontrar livros para ampliar horizontes e satisfazer curiosidades. É um mestre!”, declara seu parceiro na dupla musical, o jornalista Carlos Mosmann.
Uma trajetória urbana que estimula a vida pulsante a partir do encontro de cada leitor com seu livro e de cada livro com seu leitor. “Bolívar encarna a mais genuína simbologia do livreiro em Porto Alegre, talvez no RS. Não se resignar a esperar leitores atrás de um balcão, mas ir ao encontro deles, gastando energia e sola de sapato, sempre disposto a debater a obra e o autor, o transforma em um livreiro muito especial e diferenciado, que honra a literatura, os literatos e os leitores.”
Não por acaso, tal sentença tenha sido proferida justamente pelo autor da campanha lançada nas redes sociais - #bolivarpatrono -, o jornalista André Pereira. Ele defende o reconhecimento da Feira do Livro de Porto Alegre “ao encantador de leitores, que é a profissão do professor Bolívar. Ele já deveria ter sido laureado pela organização da feira se não houvesse outros interesses, sobretudo midiáticos e corporativos. Afinal, são 70 anos de uma vida dedicada a difundir a literatura, os livros e os autores.”
Notória popularidade, apreço e referências encontram eco numa movimentada livraria situada na Rua da Ladeira, entre julho de 1991 e novembro de 1997. A Bolivros reunia ali, no coração da capital, uma efervescência de saberes e fazeres artísticos para além do vasto universo dos livros. Palestras, debates, exibição de filmes, apresentações musicais, enfim. Temáticas e abordagens não faltavam ao apetite cultural. Tratava-se do projeto Sexta-feira na Bolivros.
O Livreiro, homônimo do Libertador das Américas, conta com brilho no olhar alguns encontros memoráveis daquele tempo. Dentre os palestrantes destacam-se Paulo Vizentini, Joaquim Felizardo, Oliveira Silveira, Moacyr Scliar, Clóvis Moura e Jacob Gorender. Teve rodas de poesia com Oliveira Silveira, Jorge Fróes, João Batista da Silva. Leitura dramática com Alberto de los Santos; filmes como O Cangaceiro, com a presença do protagonista Alberto Ruschel e o documentário Além do Cidadão Kane, cujo público foi recorde. Música com o Alemão Mosmann e com Demétrio Xavier.
Das curiosidades, cita evento com o marinheiro aposentado José Adelmo Borges. “Casa cheia, após a palestra houve espaço para perguntas e comentários, como sempre. A diferença é que ninguém arredou pé, ultrapassando o horário costumeiro (2 horas) em 60 minutos. Tive que pedir licença para fechar a loja, às 22 horas. O tema era a vida daquele profissional, num ciclo que incluiu uma socióloga (Enid Backes) e um professor (Oliveira Silveira).”
São tantas histórias, andanças e interlocução entre editoras e leitores, que há de se respeitar os limites deste relato. Mesmo assim, vale comentar que nosso múltiplo artista também foi colaborador do Brasil de Fato, no período em que o Frei Sérgio era combativo deputado estadual.
Da sua trajetória de agilizar encontros entre livros e leitores, mais um causo. "Uma vez, um certo vereador encomendou um livro, sem saber o título, editora ou autor. Sabia apenas que o tema era criação de peixes em açude e que o autor era primo de determinado ex-deputado (por sinal, da ARENA). Pensei na única editora a publicar diversos manuais disso, daquilo e mais aquilo. Pensei na possibilidade do autor ter o mesmo sobrenome do parente deputado. Eureka! Foi só o tempo de ligar para a editora, conferir preço, buscar e entregar na Câmara de Vereadores. Em tempo: dito vereador só comprou aquele livro, embora me visse pelo menos duas vezes por semana pela Câmara. Isso foi por volta de 1990.”
Quando questionado sobre livros que marcaram sua vida, lembra logo de dois, e do mesmo autor: Júlio Verne. “Li na adolescência e embora fosse um conservador, me fez pensar. Um dos livros, Aventuras de Três Russos e Três Ingleses, me fez perguntar a mim mesmo que faziam no coração do continente africano. Era a primeira janela para a descoberta duma coisa chamada imperialismo. O outro é Os Náufragos Do Jonathan, situado na Terra do Fogo, o dilema do protagonista, cuja cabeça estava a prêmio na França, e a comparação que faz daquele país com a sociedade indígena em que foi forçado a viver, pelo naufrágio. Procurava atrair os navios que navegavam naquela região, antes da abertura do canal do Panamá. Quando consegue acender fogo do jeito indígena, um navio, finalmente, se acerca. Isso aciona nele um processo de repulsa pela sociedade que queria matá-lo, ao mesmo tempo que entendeu ser uma sociedade sem classes - seu desejo. Afasta-se da praia e ruma para a aldeia dos nativos. Isso me escancarou a existência do abismo entre sociedades divididas em classe e as ditas primitivas.”
Bolívar tem uma filha, 40 anos, formada em Letras-Japonês, tradutora, atriz e mestranda em Literatura. Um filho, 27, que segue o ofício do pai e tem livros de poesia e contos publicados. Uma neta de 2 anos, por quem é encantado. E assim ele segue pela cidade, feito O Acendedor de Lampiões, personagem literário de Jorge de Lima, com quem se identifica.
A beleza da harmonia se contrapõe à dureza dos tempos
Amigos desde os anos 70, Vô Vivendo & Vô Fazendo é a união artística de dois militantes políticos e culturais históricos: Bolívar (o Livreiro) e Carlos Mosmann (o Alemão). Ambos têm uma trajetória que mescla saberes e fazeres voltados ao humano, ao universo da democracia, da boa informação e do enriquecimento cultural. Eles dizem ter mais raízes e buscas do que propriamente influências.
Pensa em dois piás, um do interior de Maquiné, na beira da Lagoa dos Quadros, e outro do centro urbano de Novo Hamburgo, então em período de delirante expansão econômica. Um andou pelos Estados Unidos, ouvindo Beatles, Stones e Simon & Garfunkel. O outro andou pela América Latina, ouvindo sua incrível diversidade musical.
A improvável aproximação acontece por conta do canto em harmonia que os dois traziam da infância. Um começou a cantar num coral. O outro ouvia e cantava música caipira com um irmão, especialmente os sucessos de Tonico & Tinoco, mas também Silveira & Barrinha, Cascatinha & Inhana, Palmeira & Biá.
Mas não só isto. As ondas do rádio trouxeram aos dois a sonoridade de Ray Charles, lá dos Estados Unidos, mas também do Trio Montecarlo, formado por hamburguenses e famoso em todo o Rio Grande do Sul por sua harmonia fundada na música alemã. Do cancioneiro gaúcho, ouviam as vozes do conjunto Farroupilha. Bolívar também prestava atenção a Luiz Menezes, enquanto o Alemão se encantava com o nordestino Luiz Gonzaga.
Bolívar e Alemão moraram juntos numa república de estudantes, em Porto Alegre. Certo dia, o Alemão dedilhou e cantou “Tristeza do Jeca”, um dos mais populares sucessos de Tonico & Tinoco. Bolívar começou a harmonizar. Não pararam mais de cantar juntos.
Com Augusto Licks e Jari Rosa da Costa, foi criado o Hora Extra, grupo que abriu caminhos na música de Porto Alegre, nos anos 70. Augusto, que mais tarde se celebrizou como parceiro de Nei Lisboa e, depois, como guitarrista dos Engenheiros do Havaí, era apaixonado por blues, estudava música erudita e prestava atenção à música latino-americana. Jari trouxe sonoridades da música gauchesca e dos ritmos afro-brasileiros.
Às diferentes histórias, os quatro somaram a curiosidade invencível de quem está vivo e a vontade de criar coisas novas. Agora, diante de um universo de tantas variadas possibilidades, as escolhas são pensadas com base na consciência e na intenção política, que privilegia o que é mais enraizadamente popular.
Segundo a dupla, “o critério definitivo é a música que nos faça bem. Se faz bem pra nós, queremos que faça bem a quem está do nosso lado, o que se traduz por muita gente. A beleza da harmonia se contrapõe à dureza dos tempos. Se conseguirmos alcançar isto, é o que queremos.”
Edição: Marcelo Ferreira