Rio Grande do Sul

40 anos da Anistia

Nilce: "Tem que construir a história desse país junto com a justiça e a memória"

O Brasil de Fato entrevistou a psicopedagoga e militante pelos Direitos Humanos, que foi duramente torturada na ditadura

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
"Não podemos esquecer, ao contrário, temos que abrir mais as coisas, mostrar como é que foi"
"Não podemos esquecer, ao contrário, temos que abrir mais as coisas, mostrar como é que foi" - Foto: Fabiana Reinholz

“Certificamos que Nilce Azevedo Cardoso é anistiada política do Brasil, nos termos da Lei 10.559, de 13 de novembro de 2002. O Estado brasileiro reconhece o seu direito de resistência contra um regime autoritário em prol da luta pelo restabelecimento das liberdades públicas e da democracia. Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça – 26 de outubro de 2012”. Com essas palavras, o reconhecimento de Nilce, por parte do Estado brasileiro, veio 40 anos depois dela ter sido presa e extremamente torturada, enquanto lutava contra a ditadura.

De cabelo atualmente ruivo, tem os olhos claros, o sorriso solto e o feminismo latente em sua fala. Quando menina, no interior de São Paulo, da cidade de Orlândia, perto de Ribeirão Preto, filha de professores e com mais sete irmãos, sonhava em ser bailarina. Com o passar do tempo, as sapatilhas deram lugar aos livros de formação e às pichações nos muros contra a ditadura. Aprendeu a correr da cavalaria e da polícia durante as manifestações.

Documento emitido pelo Estado brasileiro | Foto: Fabiana Reinholz 

O contato com a militância ocorreu quando entrou na USP para cursar física. A partir dali, fez parte primeiramente da Juventude Universitária Católica (JUC), depois da Ação Popular (AP), que ao contrário do que afirmou o presidente Jair Bolsonaro, não era um grupo de luta armada. Através do grupo, a “guria” que vivia numa bolha tem contato com a classe operária, onde afirma ter aprendido muito com as mulheres nas fábricas por onde passou.

Durante a clandestinidade, vem parar em Porto Alegre, em 1969. Três anos depois, é sequestrada em uma parada de ônibus. Desde o primeiro momento, foi agredida e, por cinco meses e meio, sofreu as mais diversas torturas, ora pelo mando de Pedro Seeling, ora assistida por Ustra.

Como ver flores, sentir o sol, ver a lua nesse lugar? Nilce Azevedo Cardoso afirma que foi só assim que conseguiu suportar aqueles horrores. Ela foi uma das presas políticas de Porto Alegre mais brutalmente agredidas. Hoje, aos 74 anos, a mãe de um casal de filhos e avó de quatro netas conversou com o Brasil de Fato por duas horas, rendendo esta que é a quarta entrevista do especial sobre os 40 anos da Lei da Anistia. Falou sobre aquele período e sobre a importância de lutar pela preservação da memória, verdade e justiça, destacando o papel fundamental das mulheres durante o processo. 

Brasil de Fato RS: Tu falastes na entrevista ao Sul 21, em 2013, que ser mulher te ajudou a superar ditadura. De que modo?

Nilce Azevedo Cardoso: Eu acho que as mulheres têm uma característica da sensibilidade feminina, e essa sensibilidade faz com que não olhe só a dureza da realidade, mas olhe as flores, a lua, quando o sol está aparecendo. Algumas coisas que ficam fora do universo masculino. Só fazendo isso, eu acho, é que as pessoas ficaram longe do suicídio ou endurecendo de vez. Algumas pessoas ficaram endurecidas, quase masculinizaram-se. O que a gente vai ver é que o feminino traz outro jeito de sentir as coisas, diferente dos homens. O que acontece, as mulheres eram estupradas, e os homens também. Mas a forma de resolver, eu tenho impressão, algumas não aguentaram e foram para o suicídio, mas outras ajeitaram a realidade afetiva, ficaram mais amigas, as mulheres com as mulheres. Tanto que eu acho que o movimento feminista trouxe muita riqueza e por isso eu acho que a revolução vai sair das mãos das mulheres.

Neste ano, durante participação no seminário "Anistia: um passado presente?" em Porto Alegre | Foto: Fabiana Reinholz 

BdF RS: Como foi a tua experiência naquele período?

Nilce: Fui presa só uma vez porque durante as passeatas aprendi a correr. Nós não andávamos armados, todas as nossas ações de rua, pichações, era tudo desarmada, não tinha esse risco de estar armada.

Eu preciso falar um pouquinho antes, porque todo mundo se lembra da Nilce presa. Na realidade, eu, Nilce, sou um todo inteiro. Então esse parêntese de dor e de horror é um parêntese na mina vida. Eu fui do movimento católico da JUC, depois passei pelas políticas do Conjunto Residencial da USP. Aquela menina de interior passou a entrar em uma universidade enorme, em 1964, e vivi todas aquelas vivências com a Maria Antônia, com o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) ali no Mackenzie. As nossas reuniões já eram um fato. Depois que terminei a faculdade de física em 67, fui para fábrica ser operária (na ocasião integrava a Ação Popular), no ABC, em Santo André.

Aí fui realmente a aprender o que era a vida, porque me encantou a força daquelas mulheres, isso me encantava. Eu morava em uma vila pobre e, morando lá, eu trabalhava na Roder. Lá eu vi e aprendi com as “meninas” (operárias) que a vida não termina na dor, ela tem dor, mas tem superação da dor, e as mulheres trazem isso em seu ventre, porque nascer claro que dói, mas é uma dor que a gente esquece, por mais demorada que seja, passa, diferente da tortura.

Cada dia morria uma criança na vila, e eu nunca tinha visto morrer bebê. Passava um dia e as mulheres estavam descendo para trabalhar na fábrica. E, com isso, aprendi um monte de coisas com essas meninas da fábrica. Eu vivia em uma bolha, eu tive que sair dela para poder encarar a realidade e foi uma beleza o trabalho que eu fazia com eles, porque eles eram de uma combatividade, e ficamos lutando contra a ditadura. Se falava e respirava revolução.

Foi uma convivência prazerosa, teve gente que não aguentou e voltou porque era uma vida dura. Eu sempre morei em porões porque era o que a gente conseguia pagar. Fazia parte do contexto, mas aquilo não me machucava. Já estava vivendo na clandestinidade quando vim para o Rio Grande do Sul, em 1969. Fui para fábrica Renner (latas), daí eu passei a ter outro medo, porque as pessoas não tinham todos os dez dedos das mãos, duas meninas, porque se trabalhava em uma máquina que, por acidente, acabava decepando.

"Aprendi com as “meninas” que a vida não termina na dor, ela tem dor, mas tem superação da dor" | Foto: Fabiana Reinholz 

Depois de um incidente na fábrica, acabei saindo de e fui fazer outros trabalhos para sobreviver. Fui empregada doméstica, babá, o que deu para fazer eu fazia. Mantinha contato com o pessoal com o pessoal do PCdoB e do PCB.

Fazia parte do contexto sempre se cuidar, mas aí, algum dia, alguém entregou o ponto e eu fui sequestrada. Estava no meio da rua, em uma parada de ônibus, na avenida Carlos Barbosa, próximo à rua Niterói, e fui conduzida para um fusca. Fui no dia 11 de abril de 1972. Eu perguntei o que estava acontecendo e, na hora, Pedro Seelig (delegado do Departamento de Ordem e Política Social – DOPS) já me virou um soco e veio aquele sangue. Outras pessoas tinham caído no mesmo lugar. A pessoa que nos entregou em São Paulo, um estudante, tinha passado por torturas e entregou todo mundo.

No caminho fui levando socos. Dai o Nilo Hervelha já se adonou, porque, creio, achou bom bater em uma guria, ficavam revezando. O Pedro Seelig mandava, chamavam ele de cacique. Imediatamente eles me quebraram o esterno (osso da região do peito), com soco. Hoje em dia eu fico pensando, é uma covardia, uma guria, eles me segurando e dando soco. Covardia, porque não ficava de igual para igual. Eu não ia revidar porque era minha posição: foi presa, aguenta firme. Eles se irritavam com isso.

Fizeram tudo que estava no livro sobre torturas. Há um livro da Assembleia Legislativa que relata todas as torturas que sofri. As torturas não são muito diferentes, só a equipe muda, os daqui são de um tipo, as da Oban de outro. Fui queimada, diversos socos, me deixaram sem comer, choques, fui posta no pau de arara, enfiaram a mão, um verdadeiro estupro. Aqui no DOPS de Porto Alegre, eu já fui quebrada, peguei infecção generalizada no corpo, me levaram para o hospital. Em geral, os médicos costumavam liberar (os torturadores) para continuarem a tortura. Depois, voltei para o pau de arara. Não tem um buraco no meu corpo que não tenha recebido choque.

Diziam-me que eu não conseguiria ter filho, eu tive dois. As torturas são algo inimaginável de contar, de alguém dizer o que sentiu. Eu fiquei todo tempo lúcida, mas daí, em uma ocasião, o organismo cedeu, perdi muito sangue. Entrei em coma, estava muito mal mesmo, tinha pego todo tipo de coisa que podia pegar. Daqui segui para a Oban e permaneci lá por um mês. Lá, as torturas eram diárias e todas as noites, muitas acareações e muitas coisas que doem muito.

Na Oban, havia várias equipes de tortura, entre as quais a de inteligência, que estudava o perfil de cada um. Sabiam que eu vinha da JUC antes de integrar a Ação Popular (AP) e viram nisso um meio de chegar em mim. Um dos torturadores, Mangabeira, era muito supersticioso. Ele usava uma roupa de candomblé. Uma noite, me levou para uma sala enfumaçada e me disse: hoje nós vamos conversar com o diabo, quero ver se você vai ficar em silêncio.

Como eu sou paulista, tinha militância em São Paulo eles queriam saber as ramificações, para acabar com a Ação Popular. Eles queriam pegar toda a liderança e liquidar. No ano seguinte, 1973, tivemos dez mortes. Paulo Stuart Wright, um de nossos dirigentes, é desaparecido até hoje.

Quando voltei para o Dops em Porto Alegre, todos nós saímos da prisão, pelo trabalho do meu advogado Eloar Guazzelli. Eu tinha aprendido com os Tupamaros que tudo tem que ficar compartimentado. Estudante sabe de estudante, operário sabe de operário, os intelectuais dos intelectuais. Eu tinha proposto que cada um só sabia de si mesmo. Mas o estudante de São Paulo ficou sabendo de várias pessoas do movimento, estudantes, intelectuais e esses caíram todos. Ele só não sabia dos operários porque esses estavam comigo. Ficou seguro em mim, por isso acho que eles exageram, para poder obter os nomes.

Tive amnésia. Fiquei com o corpo todo debilitado, tenho cirrose, uma prótese no pescoço por conta do pau de arara.

Na Oban, "as torturas eram diárias e todas as noites" | Foto: Fabiana Reinholz 

BdF RS: Onde a senhora estava quando recebeu a notícia da lei da anistia?

Nilce: Eu estava aqui em Porto Alegre porque, quando nós saímos da prisão, não podíamos sair do Estado. Tinha que ir lá na justiça militar, assinar que estava aqui e o que ia fazer. Minha mãe veio para cá cuidar de mim e me pôs em um curso de matemática. Estava mal de saúde, toda quebrada, tinha medo de sair na rua, então ela me acompanhava. Imediatamente fomos arrumar emprego como professora de física, no Instituto de Educação e Pesquisa (IEP). Tinha medo dos alunos, das pessoas me tocarem, parecia que eu ainda estava em carne viva. Demorei um tempo. Depois até entrei na biodança para ver se dançando eu poderia superar, se dançando eu ia melhorando do pânico de gente, porque eu fiquei muito tempo isolada. Aqui e lá em São Paulo, vivendo todos aqueles horrores com que sonho até hoje.

Fiz mais de 20 anos de divã e, posteriormente, na Clínica do Testemunho, e mesmo assim não se apaga, não se chega no lugar onde você deleta aquela ferida. Você vai arrumando algumas coisas para poder sobreviver, mas é duro. E um dia minha mãe disse: Agora chega, não quero ouvir nada sobre isso, não quero ouvir você falar de tortura e não quero ver uma lágrima. Obedeci.

Mas tive que falar. Nós temos que falar. Depois de um tempo, a ideia era fazer da minha militância a denúncia de tudo que tinha acontecido, uma militância para acabar com a ditadura, e ainda verificar como viver uma nova sociedade, ou seja, criar uma nova sociedade. Entrei no Instituto de Estudos Políticos e Sociais (IEPS), começaram a aparecer os comitês de anistia e foi ótimo ter aparecido porque era o mote para todo mundo ficar batalhando sobre isso. Entramos no movimento feminino pela anistia, que aqui tinha na linha de frente a Mila Cauduro, Alicia Peres, e Francisa Brizola, e do comitê Brasileiro pela Anistia, a Raquel Cunha.

O tempo de choro tinha passado e voltei a trabalhar junto ao MDB. Depois veio a anistia, fruto de uma mobilização popular, principalmente das mulheres, que não deixaram cair essa luta. Sabíamos das pessoas que estavam no exterior, dos que tinham sido banidos. Várias ações foram feitas para recuperar os que estavam presos.

Agora, nessa época que estamos vivendo, de todas essas maldades que nós estamos vendo, a maior delas é a que está tirando a possibilidade das pessoas terem vida. Aumentou o número de suicídios. Teve um companheiro, que era da VAR- Palmares, que ficou preso por 15 anos e saiu com a anistia. Quando saiu, estava fora da vida porque, depois de tantos anos dentro de um cubículo, sair para a rua é quase inimaginável. Ele estava sem emprego, sem dinheiro, era de família pobre, a família inteira tinha sido presa. Era um horror e ele terminou se suicidando.

BdF RS: O que significa a lei da anistia?

Nilce: Para mim tem duas coisas. A positiva, uma vitória do movimento mobilizado que trouxe essa questão para ser discutida, uma força popular empurrando para acabar a ditadura. Todos os exilados puderam voltar para seu país, também a possibilidade de trabalhar politicamente. Com a anistia sendo promulgada, havia a possibilidade da atuação política.

Negativamente, foi que nós queríamos, assim como outros países conseguiram, fazer o julgamento dos mandantes, dos militares, dos empresários que financiaram, porque a Oban foi financiada, e dos torturadores. A ideia que nós tínhamos era, bota todo esse povo e vamos julgá-los, pelo menos a cabeça da gente ficaria melhor. Isso nós não conseguimos porque esses militares, mandantes, torturadores, sequestradores e assassinos foram anistiados. Os nossos foram justiçados, enquanto que na Argentina estão sendo presos, há generais sendo presos, cumprindo pena. Aqui, nada.

Tem o caso da Inês Etiene Romeu, única sobrevivente da Casa da Morte - centro de tortura clandestino da ditadura em Petrópolis (RJ) - depois de 96 dias de martírio, cujo militar que a violentou e a estuprou está sendo processado, mas é um caso isolado. A parte dos julgamentos e punições, a gente tinha que ainda conseguir. (Pelo 20 pessoas teriam morrido na Casa da Morte).

Bdf RS: O Brasil foi um dos poucos países sul-americanos que não puniu os militares responsáveis pelas ditaduras dos anos 1960/70. E é o único em que os militares estão de volta ao poder. Uma coisa levou à outra? Como tu avalias isso?

Nilce: Quando eu saí da prisão, brigava que não dava para apagar o que tinha acontecido. Muita gente não sabia que eu tinha sido torturada, porque eu só fui falar depois de um tempo, primeiro porque eu tinha tido uma amnésia, segundo porque eu tinha medo. Só depois de um tempo eu vim denunciar e fiz disso uma militância. Fui em escolas e universidades falando sobre isso. Em todos os lugares, eu reafirmava uma das lutas, a da Justiça. Nós temos que manter a memória das nossas lutas, os nossos líderes foram assassinados, não tem um partido que ficou com a sua liderança viva, todos morreram. Tanto que a ausência de lideranças atualmente é grande porque teve que formar todo esse povo. As novas lideranças tiveram que nascer de novo, crescer e aparecer.

Então tem que se fazer justiça para que se possa continuar, pela luta por memória, pela verdade. Tem que construir a história desse país junto com a justiça e a memória. Se não, vem um cara que diz que a violência é que é prioridade, o símbolo é a arminha na mãozinha até das crianças pequenas, acham que está certo torturar, não sabe porque não mataram todos. São coisas que são faladas, e tem ainda 30% que apoiam piamente esse cara. Não é possível, sem fazer justiça e sem que eles saibam o que fizeram. O resto do mundo sabe, todo mundo gritando, só que aqui dentro não ecoa.

Até hoje, matam gente e se fica impune. Os índios estão sendo assassinados, os negros, lgbt, jovens estão sendo aniquilados. Como é que um país vai sobreviver, vai viver democraticamente sem tudo isso ser julgado? O povo tem que saber, tem que lutar por um país onde se tenha possibilidade de vida, aqui nós perdemos isso.

"Até hoje, matam gente e se fica impune" | Foto: Fabiana Reinholz  

BdF RS: Como o tipo de transição que se teve da ditadura para a democracia, sem punição para os torturadores e sem passar a limpo a história da ditadura nas escolas, tem a ver com a presença de Bolsonaro no Planalto - uma pessoa que, no voto do impeachment de uma presidenta que havia sido torturada, homenageou o seu torturador?

Nilce: Quando ele fez isso, lá em casa, todo mundo entrou em pânico porque ele massacrou aquele que viria a ser meu marido, ele era operário e foi massacrado pessoalmente pelo Ustra. Ele tinha prazer de bater nele. No meu caso, quando estive na Oban, ele assistiu todas as minhas sessões de tortura, estava lá vendo tudo que estava acontecendo, e ver se ia morrer na mão dele. E esse Ustra, que matava gente adoidado, ficou impune.

Acho que tudo isso contou porque nós não conseguimos, e eu sinto muito em dizer, lutar por isso; nós não construímos uma democracia como tem que ser, fazendo justiça, fazendo memória, construindo e recuperando a história. Nós também não fizemos a nossa parte. Por isso tem que ter uma mobilização popular mais forte. Na época do Lula, se largou muito o social, porque todo mundo foi para Brasília. E aí, claro, lá se foi a possibilidade de grande mobilização, porque tiraram as lideranças do lugar para por lá em Brasília. Tinha que ter deixado, enraizado essa possibilidade de crescimento de trabalho.

Nós tínhamos que ter visto imediatamente, o Bolsonaro não ficou lá quase 30 anos sem fazer nada, ele ficou se preparando. O que tinha na porta dele lá em Brasília? Quem gosta de osso é cachorro, estava lá, e nós não fizemos nada, não tiramos aquele cartaz, não denunciamos, com exceção de um pequeno grupo. Tínhamos que ter feito uma mobilização popular sobre isso, porque é o filho do povo que está morrendo.

BdF RS: Que expectativa é possível ter quanto à justiça para os torturadores quando um fã do coronel Ustra está no poder?

Nilce: Não se tem, temos que tirar o Bolsonaro de lá. Vamos ter que encontrar uma saída para levar o povo junto. Esse é o nosso desafio, fazer uma frente de pensadores, atuadores e praticantes da revolução para levar o povo junto. Claro, tem que ter uma liderança, não pode ser um só partido, uma só visão, tem que ser um grupo de pessoas que pensam. A esquerda tem que amadurecer para pensar que tem que se juntar. E que quando eu divirjo de ti em alguma coisa, por exemplo, procuro uma coisa em que concordamos e vamos lutar juntos por um bem maior, e vamos resolvendo essas diferenças no dia a dia. Com esse aí (Bolsonaro) não tem saída, com ele é morte certa.

BdF RS: Passados 40 anos da criação da lei, qual a avaliação que pode ser feita de seus efeitos na sociedade brasileira? A Lei da Anistia deveria fazer o país repensar a ideia de que perdão é o mesmo que esquecimento?

Nilce: Acontece o seguinte, até o perdão para mim é difícil, esquecimento jamais. Não podemos esquecer, ao contrário, temos que abrir mais as coisas, mostrar como é que foi. Eles dizem que foi queimado, então vamos pegar quem estava lá e vamos contar como é que foi. Já apareceu em novela, já apareceu em outros lugares e fica por isso mesmo. Tem livro contando, e o presidente fala os absurdos que fala, e fica por isso mesmo. Tinha que estar todo mundo de pé.

O filho do presidente faz parte de uma milícia, está provado. Cadê o Queiroz? Está tudo provado, contudo, como esses ai não tem jeito.

Sobre os 40 anos, acho que nós estamos em outro patamar. Não estamos naquele patamar antigo, de antes da anistia. Precisava ter a anistia, e teve a parte positiva. Essa parte foi justificada e foi boa. Sem esquecimentos, e sem passar a mão por cima. Nós formamos a Clínica do Testemunho e cada vez que a gente faz uma ação pública aparece alguém. Essa semana eu recebi uma carta contando da sua história, que o avô…

Fundamos a clínica há cinco anos, na época apareceram as indenizações, as possibilidades. Aí os psicólogos se juntaram e acharam positivo que houvesse uma clínica onde tivesse a oportunidade das pessoas que tinham sofrido, dos filhos, netos e outras pessoas no entorno, porque quando uma pessoa é torturada, todos são, é a teoria do efeito borboleta. O povo brasileiro foi torturado, temos que resolver isso. Havia um grupo de pessoas, com formação, que trabalhava no CRAS para poder ajudar essas pessoas a falar, porque essas morrem de repente. É preciso fazer alguma coisa, nós fizemos. Entrou o Bolsonaro e acabou com tudo. Acabou com a comissão de anistia, com a clínica do testemunho, ele acabou com todas as possibilidades. Vamos ter que lutar de novo. (veja aqui o relatório final da 2 edição da clínica do testemunho RS, de 2018)

"O povo brasileiro foi torturado, temos que resolver isso" | Foto: Fabiana Reinholz 

BdF RS: Quando a tua memória voltou?

Nilce: Quando eu me percebi amnésica, vi que teria que organizar a vida. Fiquei sabendo, por exemplo, que lá na Argentina as crianças, los hijos, tinham dificuldade de aprendizagem, que estranho. Dai foram descobrir que todos eles eram filhos de presos políticos. Aí eu quis saber quem é que tem dificuldade, fui fazer um curso de psicopedagogia lá na Argentina. Depois fui fazer uma especialização na clínica da UFRGS. Até hoje sou psicopedagoga.

Foi durante esse processo que a memória voltou, através da Alicia Fernández, psicopedagoga da Argentina que teve umas vivências lá, e que durante o processo me puxou, durante uma vivência. Ela chamou os psicopedagogos e disse: “vocês todos ganharam uma bolsa, entrem todo mundo naquela fila, peguem a bolsa e podem ir para o avião”. Todo mundo imediatamente foi para a fila pegar o papel. Eu, ao contrário, não fui buscar a bolsa, fui ficando em posição fetal. Alice percebeu que alguma coisa estava acontecendo. A Alice era muito cuidadosa com as observações, ela chegou perto e disse: “Nilce, você tem um nome.” Isso porque eu dizia com a identidade ainda meio frouxa: “que nome eu vou dar, não tenho nome para dar com os tantos que usava, não tenho nome”. E fui afundando, não conseguia sair dali. Aí ela dizia, “Nilce, teu nome é Nilce Azevedo Cardoso, você tem um nome, vem, volta”. Até que voltei. Isso por volta de 1975.

A amnésia ficou ainda por muito tempo, por exemplo, coisas que eles me perguntaram, apaguei. Algumas coisas que eu não iria dizer, apaguei. Onde moravam os operários, apaguei. Onde ficaria tal coisa, quando eles me massacraram, apaguei. Tem coisas que ficaram apagadas, e essas coisas apagadas, tem que dar um jeito para poder estar ali sem te incomodar. Fiquei trabalhando essa reconstrução da memória, reconstrução de si mesma.

Confira o depoimento de Nilce na Comissão Estadual da Verdade do RS, em 08 de março de 2013:

Conheça mais histórias das mulheres durante a ditadura no livro “Luta, Substantivo Feminino - Mulheres Torturadas, Desaparecidas e Mortas na Resistência à Ditadura"


Série 40 anos da Anistia - confira as entrevistas anteriores:

Raul Carrion: “De quê que eu deveria ser anistiado? Por defender a Constituição?”

Mara: “Nunca se teve correlação de forças suficiente para punir os militares”

Raul Pont: “Não podemos perder a memória”

Edição: Marcelo Ferreira