Esboça-se no norte do Estado do Rio Grande do Sul, portanto, a partir do começo de 1978 um novo (velho) cenário de lutas envolvendo a questão da terra, resultado de problemas iniciados nos idos de 1960 e não resolvidos satisfatoriamente pelo Estado Brasileiro. Este caldo de crises faz despertar o debate, entre políticos, lideranças religiosas, lideranças estudantis e do meio sindical, em torno da problemática da terra, ao mesmo tempo em que são gestados e esboçados os primeiros lances organizativos para a eclosão do Movimento dos Sem Terra.
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Novas estratégias começam a se fazer sentir, dentre essas, a via parlamentar. Comissões e representações de sem terra vão a Porto Alegre por dezenas de vezes, acampam em frente ao Palácio, ao Incra, pressionam parlamentares e a Igreja Católica, buscam apoio na imprensa, nas universidades, fazem abaixo-assinado, enfim, buscam se fazer sentir, de uma forma organizada e coletiva como resultado de um processo de consciência da categoria que, mobilizados agora e conscientes da necessidade de luta, tentam implementar.
Chega-se então ao ano de 1979 e, desde os primeiros meses, o grupo dos expulsos de Nonoai já tem uma certa caminhada, a partir da qual já obtivera certa experiência, coesão e poder de organização, viabilizada por lideranças, dentre elas, João Pedro Stédile e Ivaldo Gehlen. Esse processo permitiu soldar certas rupturas no interior do grupo e eliminar certos medos e/ou certa timidez para a luta e resistência. Houve um processo amplo de organização, de estratégias de nucleação em municípios da região, ampliação do contingente de camponeses com pouca ou sem terra, coordenações, interligações e redes, as quais vão criar um corpo organizativo e que dará consistência às ações que estavam por vir em meados de 1979 com ocupações de fazendas e acampamento. A organização dos núcleos de sem terra inova ao introduzir uma certa pedagogia no trabalho de estruturação e organização do Movimento.
Em julho de 1979 os sem terra iniciam o que se poderia chamar de movimento mais amplo de pressão, pois consideramos que a invasão da reserva florestal e de uma outra gleba particular da Fazenda Sarandi (propriedade de Ary Dionísio Dalmolin), em meados de 1978, foram apenas os primeiros esboços do movimento. Aqui já temos presente alguns resultados práticos da organização dos núcleos formados pela CPT. Naquele momento, intensificaram-se as viagens à capital do estado, objetivando obter do governo a liberação das áreas das fazendas Macali e Brilhante, na antiga Fazenda Sarandi, para o assentamento dos expulsos de Nonoai.
O governo, naquele momento, pediu um prazo de 30 dias para resolver a questão, porém o prazo esgotara-se sem que fosse apresentado uma proposta de solução. Frustrado o intento dos sem terra de receber do governo as propriedades citadas, sem a necessidade de ocupação, o grupo decide ocupar a gleba Macali na noite de 6 de setembro, data estratégica, véspera de feriado nacional, pois dia 7 de setembro seria numa sexta-feira, período de um feriado prolongado, pensava-se que seria mais fácil e as repercussões apareceriam somente na segunda-feira. Um contingente, primeiramente de 101 famílias, transportadas por caminhões de alguns municípios da região norte, em particular de Nonoai, Ronda Alta e Planalto, ocuparam a referida fazenda. Chegaram à noite, ficaram ao relento e, no dia 7 de setembro montaram barracas grandes que abrigavam famílias inteiras.
O governo estadual reage à ocupação e ameaça desmantelar o movimento da Macali num primeiro momento, porém recua em seguida para tentar resolver o impasse pela via da negociação. E, finalmente, surge o primeiro resultado prático favorável aos ex-posseiros das reservas indígenas de Nonoai e de outros municípios: a Macali será conquistada; decidindo o Governo do Estado pela permanência no local do grupo de ocupantes até que uma solução definitiva fosse tomada, assim que fossem superados os ditames burocráticos.
O caso Macali, porém, abriu um precedente e os sem terra se animam e preparam a ocupação da Brilhante, o que se efetiva ainda no final do mês de setembro de 1979. Como os ocupantes da Macali não foram retirados, os da Brilhante também não e, assim, produziu-se um germe de esperança, confiança na organização e luta num cenário nacional extremamente avesso e temeroso.
Fazenda Sarandi, símbolo de resistência
A ocupação da Brilhante, no entanto, provoca forte reação do governo e tem-se nos meses subsequentes inúmeros confrontos entre ocupantes e Brigada Militar. Foram mais de seis meses de muita pressão e enfrentamento, com idas e retornos dos colonos em seu interior, muitas resistências e estratégias, as quais resultaram em grande aprendizado para os agricultores e, principalmente, para as lideranças e intelectuais do movimento. Esse processo todo vai dar o substrato, logo após, para o “Movimento dos Sem Terra”, fruto do Acampamento da Encruzilhada Natalino.
Ademais, os casos de Macali e Brilhante reacendem as discussões sobre a polêmica em torno das terras do Estado na Fazenda Sarandi. Na Assembleia Legislativa, no final de 1979, uma CPI desnuda uma série de trapaças, negócios escusos, casos de grilagem, vendas ilegais de madeiras, distribuição de terras para pessoas estranhas a agricultura, desmatamentos realizados ao longo do período militar (desde 1964 até 1979), irregularidades que, invariavelmente, eram realizadas pelos funcionários-administradores sob a intermediação de parlamentares situacionistas.
As ocupações das fazendas Macali e Brilhante, além da ameaça de outras vizinhas e/ou integrantes da histórica Fazenda Sarandi, em setembro de 79, envolveram não só os camponeses expulsos de Nonoai, mas, também, os atingidos por barragens, diaristas de granjas, assalariados rurais, sem terra assentados na Fazenda Sarandi (desapropriação de Brizola pelo Movimento Master) e que ainda não tinham obtido título definitivo, bem como posseiros, arrendatários, minifundistas que entendiam não ser possível fragmentar ainda mais sua propriedade e que necessitavam de terra para permitir a sobrevivência de membros de suas famílias, além dos retornados dos projetos de colonização no Mato Grosso e mesmo alguns de Bagé. Portanto, é um cenário amplo de deserdados da terra, camponeses que queriam continuar na terra, mas, suas condições, no interior do modelo de modernização produtiva que se desenhava, não lhe permitiam.
O grupo se amplia; produzem-se novos grupos e conflitos internos em torno de quem poderia ou deveria ser contemplado numa futura desapropriação e possível seleção de acampados em determinadas fazendas. Acampamentos anexos aos já existentes começam a aparecer na região, produzindo conflitos e divisões internas, bem como maior visibilidade pública do fato, apoios e opiniões externas em torno da questão.
A primeira vitória, ainda que parcial, dos grupos que pressionavam acontece entre maio e julho de 1980, através da seleção de famílias para o assentamento na Fazenda Brilhante. Sendo essa, como também a Macali, objeto de grandes disputas judiciais e pressão social.
Em outubro de 80, outro grupo não contemplado tentou invadir a Annoni sem obter resultados positivos, pois são imediatamente desalojados pela polícia, a qual esteve sempre no período em alerta e marcando presença na região, forçando os invasores a retornar para o acampamento na Brilhante.
Desse modo, a partir de Nonoai, deslocam-se várias frentes em torno da questão da terra na região, além de sua tentativa de assentamentos, discute-se a legitimidade das negociações fundiárias, reabrem-se as discussões em torno das políticas de colonização que, no fundo, foram marca registrada de governos militares de até então, assim como de governos do estado.
A questão agrária regional passou a ser muito mais politizada por setores da sociedade civil organizada, pois experiências frustradas tanto dentro da Reserva Indígena de Nonoai, quanto outras formas de pressão e invasões tinham se mostrado pouco frutíferas nesses quase dois anos após a expulsão. Nesse sentido, mais de 350 famílias de acampados no interior da Fazenda Sarandi continuavam a vê-la como símbolo de resistência e expressão das contradições da questão agrária no Brasil e em especial na região e, acima de tudo, palco da insistência da solução para os acampados próximos e/ou no interior a mesma.
* Professor do Programa de Pós-Graduação em História na Universidade de Passo Fundo (PPGH/UPF)
Edição: Marcelo Ferreira