Ninguém pode estar a salvo do poder fiscalizador do Estado
A crise que se instalou na Receita Federal, ou entre a Receita Federal e agentes públicos da cúpula do Judiciário, do Legislativo e do Executivo, revela uma contradição que precisa ser esclarecida à sociedade, a de que nem todos são iguais perante à Lei. A legislação tributária não exime ninguém. Seja quem for a pessoa ou que cargo ela ocupe, todos estão sujeitos às obrigações tributárias, logo, ninguém pode estar a salvo do poder fiscalizador do Estado. Quanto mais importante a função pública exercida, maior deveria ser a obrigação do agente de se submeter ao fisco. Aliás, talvez uma boa medida seria criar uma obrigação de auditar as contas pessoais dos ocupantes de altos cargos a cada dois anos, por exemplo, para que não paire dúvidas sobre suas reputações.
O ministro do STF Alexandre Moraes, ao suspender investigações da Receita Federal, colocando sob suspeição o trabalho dos Auditores Fiscais, acende uma luz sobre uma realidade que nem sempre é visível, a de que a Lei, de fato, não é para todos. Os contribuintes normais não têm como impedir a ação fiscalizadora do Estado, mas a eles estão garantidos todos os meios legais, administrativos e judiciais, para se defenderem das autuações do fisco.
Mais recentemente, o presidente da Câmara dos Deputados, em entrevista televisiva, declarou que o poder da Receita Federal precisa ser controlado. Interessante que esta afirmação contradiz a opinião das autoridades tributárias que, historicamente, criticam o crescente cerceamento do poder de fiscalização. Da mesma forma, o presidente da República tem manifestado sua irritação com o que ele chama de perseguição que a Receita Federal estaria fazendo à sua família.
A manifestação do deputado Rodrigo Maia e do presidente da República coincidem com a posição do ministro do STF, ou seja, os representantes dos poderes, por motivos diversos, manifestam suas inconformidades com a atuação da Receita Federal, talvez porque finalmente a fiscalização tributária começa a enxergar também ilícitos cometidos por estes setores.
A limitação que se impõe ao fisco não é exatamente contra o fisco, mas sim contra o direito que têm os cidadãos de que o interesse público deve prevalecer sobre os interesses individuais, e revela que há, sim, setores que se colocam acima do poder do Estado. Por mais que existam imunidades, prerrogativas especiais e privilégios concedidos a determinadas autoridades, como parlamentares, governantes, ministros e magistrados, estas ressalvas nunca poderiam alcançar o poder de investigação do fisco em questões tributárias.
A crítica que se faz ao poder da fiscalização tributária é absolutamente improcedente, pois não há ação mais controlada do que a ação da fiscalização tributária. Em qualquer lançamento tributário, o autuado terá à sua disposição duas ou três instâncias administrativas para recorrer e todas as instâncias judiciais à sua disposição. Para a Fazenda Nacional, as instâncias administrativas esgotam complemente suas pretensões.
Além disso, se o lançamento tributário configurar também alguma conduta criminosa, esta não poderá ser denunciada sem que a autuação se torne definitiva na esfera administrativa e o autuado deixe de pagar ou parcelar sua dívida. Ou seja, se houver crime tributário, mas o autuado, após perder em todos os recursos, vier a pagar ou parcelar seu débito, não haverá punição na esfera penal, situação completamente distinta de qualquer outro acusado roubo ou furto, cuja reparação do dano apenas produzirá atenuação da pena na esfera criminal, mas nunca sua extinção.
A origem deste incômodo manifestado por estas autoridades talvez esteja na distorção criada já há algum tempo no entendimento acerca dos efeitos atribuídos a pessoas consideradas politicamente expostas, as famosas PPEs. Este é um conceito que foi criado justamente para aumentar a vigilância dos órgãos de controle sobre estas pessoas, cujas funções implicam maior suscetibilidade a desvios funcionais. No entanto, o tratamento fiscal que costuma ser dado a este grupo é justamente o contrário, ou seja, há um maior controle em relação às iniciativas de fiscalização deste grupo, para evitar que orientações políticas possam motivar direcionamentos das fiscalizações ou vazamentos de informações sigilosas, o que cria uma sensação de que estariam sob um manto de proteção, que se confunde com salvo conduto.
O poder de fiscalizar da administração tributária está alicerçado na sobrevivência do próprio Estado, ou seja, na garantia de sustentabilidade das políticas públicas e dos direitos sociais e na aplicação equitativa da lei tributária. Ninguém pode se considerar imune do dever fundamental de pagar tributos e é nisso que se baseia a necessidade de garantir prerrogativas e autonomia às autoridades tributárias, que têm, como contrapeso, no entanto, a responsabilidade de preservar o sigilo fiscal dos contribuintes. Essa autonomia, no entanto, não significa autorização tácita para atuar em benefício de interesses partidários ou segundo à conveniência de setores privados.
A seleção dos alvos a serem fiscalizados deve ser feita com base em dados técnicos e impessoais, mas isso, em si, não significa qualquer penalização, pois a fiscalização pode, inclusive, atestar a regularidade das contas do contribuinte, sem qualquer efeito punitivo. Portanto, rebelar-se contra a fiscalização pode significar somente uma acusação vazia de abuso de autoridade ou uma confissão de cometimento de ilícitos tributários.
Ressalta-se que todo o procedimento fiscal ocorre de forma absolutamente sigilosa, em uma relação que envolve somente o fisco e o contribuinte, não cabendo à administração tributária dispor livremente das informações obtidas, exceto para atender requisição da justiça ou em caso de necessidade de representação criminal, conforme determina o Código Tributário Nacional (Lei 5.172, de 1966). Eventuais vazamentos de informações sob sigilo devem ser apurados, e os responsáveis, punidos, mas não podem servir de justificativa para cercear o poder de fiscalizar sob pena de fazer prevalecer o interesse de alguns sobre o interesse de toda a sociedade.
Edição: Marcelo Ferreira