A papai Léo, in memoriam, e a todos os papais no seu dia
Sexta, dois de agosto, final da tarde. Muito frio no Rio Grande do Sul, quatro graus de manhã, não mais de dez graus às 17h. Em casa de mamãe, o fogão a lenha funciona a mil o dia inteiro. Mamãe Lúcia, 92 anos, fica sentada ao lado do fogão o tempo todo, para esquentar pés, mãos e o coração. De noite, o chimarrão rodando, o mano Marino coloca pinhões na chapa do fogão. Nada melhor nesta altura do campeonato, depois de um dia intenso de trabalho na roça. Mais um pouco e os pinhões começam a fazer seu barulho característico, estalos, rachando em alguns lugares, sinalizando de que estão no ponto, escuros por fora, tri gostosos por dentro.
A cuidadora de mamãe, Delci, muito responsável e prestativa, vai embora. É sexta-feira. Depois de uma semana inteira cuidando da casa e de mamãe, vai encontrar sua família. A mana Elma, que trabalha durante o dia na propriedade da família, uma colônia das antigas, de 25 hectares, e preparando na sexta verduras, frutas e legumes para a Feira do Produtor de sábado na cidade, Venâncio Aires, vai para sua casa, distante uns 10 kms da Vila Santa Emília, em Mato Leitão, município vizinho.
Mamãe pergunta se por acaso também vou embora. Acha-se sozinha. Quase começa a chorar. Os olhos lacrimejam de saudade na frente de todos. E começa a se preocupar com o dia seguinte, sábado. Quem vai cuidar dela, pergunta? Os irmãos vão para a Feira do Produtor, não vai sobrar ninguém em casa, pensa ela. Teme ficar sozinha, o que, claro, nunca acontece. Outro irmão, Bruno, e sua esposa Rejane, que moram do outro lado da estrada, virão sábado de manhã para fazer companhia, além da minha presença. Desta vez não vou embora para Porto Alegre ou qualquer outro lugar, nestes tempos de luta e correrias pelo mundo.
Para mamãe não é suficiente. Quer todo mundo a seu lado o tempo todo, precisa de companhia, acolhimento. Quer contar, em alemão, se dormiu bem ou mal à noite, se os bois e vacas do vizinho estão no potreiro, se o Max, o cachorro da casa, está por perto, quer falar de filhas e filhos, netas e netos, a maioria distantes. O mano Marino diz que ultimamente mamãe não quer ficar sozinha nem por dez minutos, que dirá uma manhã ou um dia inteiro.
Todo mundo precisa mais que nunca de companhia. Ninguém solta a mão de ninguém, nem de idosos, nem de jovens, especialmente negras e negros, nem de imigrantes, nem de mulheres, nem de pessoas com deficiência, nem de desempregados, nem de população em situação de rua, ou de qualquer ser humano, ou de todo ser vivo.
Os tempos são de luta, de mobilização, por tudo que está acontecendo no Brasil e no mundo. Os tempos são de companhia, muita companhia, e sempre, para poder atravessar as tempestades da conjuntura, para enfrentar as ondas de ódio e intolerância, para desenhar futuro e esperança. O cuidado com os pobres, os desempregados, os desassistidos é fundamental. A companhia aos perseguidos, humilhados, injustiçados é necessária, imprescindível. Companhia, presença, solidariedade para com os que estão perdendo seus direitos, os discriminados, os que sofrem preconceitos de todos os tipos, os solitários, que são muitos, as crianças abandonadas.
O frio gaúcho nos primeiros dias de agosto é de encarangar cusco em procissão, de acordo com a expressão local. Mamãe fica toda encasacada ao lado do fogão a lenha, Delci olhando cada gesto seu, ouvindo cada palavra e pedido. Mas não é o frio que preocupa mamãe. É, sim, ter alguém por perto, é sentir-se segura para ir ao banheiro, é poder repartir seus sentimentos e lembranças, é ter alguém do seu lado, fazendo companhia.
Assim, olhando nos olhos, dando-se as mãos, dividindo angústias, repartindo a esperança, brasileiras e brasileiros vão atravessar junto os tempos bicudos. Ditadores de plantão, inventores de mentiras, propagadores de fake news não conseguirão apagar a solidariedade. Ninguém soltando a mão de ninguém, será possível livrar a democracia das ameaças que vem sofrendo, será defendida a soberania, serão garantidos os direitos das trabalhadoras e dos trabalhadores, vai-se construir um tempo de paz, de justiça, de fraternidade, vai-se plantar esperança e colher um futuro onde todas e todos tenham a companhia da comida na mesa, dos bens repartidos, do cuidado com todos os seres vivos e da Casa Comum.
Edição: Marcelo Ferreira