Rio Grande do Sul

MORADIA

“Ruaologia”: ciência de quem vive na rua e luta pelo direito de habitar a cidade

Termo foi alcunhado por Carlos Henrique, um dos cerca de cinco mil que vivem em situação de rua em Porto Alegre

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Em 2018, na capital gaúcha, a Ocupação Aldeia Zumbi dos Palmares foi uma das tantas que já se organizaram, até serem despejadas
Em 2018, na capital gaúcha, a Ocupação Aldeia Zumbi dos Palmares foi uma das tantas que já se organizaram, até serem despejadas - Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sob viadutos e marquises, nas calçadas e praças das cidades, a história de vida das pessoas em situação de rua releva uma realidade de exclusão social, vínculos interrompidos e pobreza. Se nas ocupações, a maioria são mulheres, nas ruas, o número de homens é maior. Contudo, a cor da pele da maioria que se apresenta nesses dois segmentos é a mesma: negra. Realidade facilmente constada ao andar pelas ruas de Porto Alegre, onde se percebe cada vez mais o aumento dessa população.

O último censo sobre esse contingente, realizado em 2016 pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em parceria com a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), com representação de militantes da população em situação de rua, mapeou, 2.115 pessoas na capital gaúcha. O Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) acredita que tenha, no mínimo, o dobro de pessoas, chegando a cinco mil, em função da pesquisa não ter alcançado bairros mais afastados, onde eles também existem. Essa é realidade que o Brasil de Fato RS aborda em mais uma reportagem da série sobre moradia em Porto Alegre.

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Quem são, que histórias trazem consigo e o que levou essa população a tal situação são questões de respostas complexas e heterogêneas, aponta a educadora social Veridiana Farias Machado, apoiadora do MNPR. “É, geralmente, um conjunto de fatores que levam as pessoas a ficarem em situação de rua. Tem questões de vínculos familiares frágeis, outras de baixa escolaridade e desemprego”, apresenta.

Conhecido como Beiço, Edson avalia que o caminho é se organizar para buscar oportunidades / Foto: Marcelo Ferreira 

“A gente é o que a gente é. Ninguém pensa que vivemos a falta de oportunidade todos os dias”, diz , Edson José Souza Campos, mais conhecido como Beiço, 35 anos, que é ex-morador de rua e também integra o MNPR. “O cara não pode preencher uma ficha de emprego porque não tem endereço fixo. Morar na rua acaba sendo falta de opção ou de escolha porque não tem perspectiva melhor”, afirma.

Quem vive nas ruas, além do preconceito e dos estigmas de serem vagabundos ou drogados, sofre pela escassez de políticas públicas eficazes e pelo desprezo e despreparo dos agentes públicos. Através da luta diária pela sobrevivência, vão se construindo outros laços e novas famílias. Conforme aponta Veridiana, essas pessoas precisam de oportunidade e de trabalho para que, de fato, haja uma redução de danos e uma possibilidade de superação. “Focar na questão do uso de drogas, para os governos, é muito cômodo. Reforça a ideia que a responsabilidade de estar na rua é somente do individuo e tiram da sua conta o que deveriam realmente fazer”, frisa.

Projeto Amada Massa está dando oportunidade a quem não tinha / Foto Marcelo Ferreira 

Foi através da oportunidade gerada pelo projeto Clube de Pães Amada Massa, e da venda do jornal Boca de Rua, que Edson conseguiu trilhar sua oportunidade. Com sua renda própria, conseguiu se mudar para uma pensão, espaço alugado há um ano e dois meses. A Amada Massa é uma iniciativa de reparação social que tem como intenção colaborar com a construção de autonomia através de um sistema de apoio e de geração de renda para pessoas em vulnerabilidade social. Sua construção parte da militância na luta pela garantia de direitos de pessoas em situação ou com trajetória de rua e vulnerabilidade, somada à experimentação em processos de Redução de Danos, de Comunicação Não-Violenta e de Princípios de Justiça Restaurativa.

Edson, que saiu de casa aos oito anos de idade devido a problemas de violência familiar, conta que, em abril de 2018, integrou a Ocupação Aldeia Zumbi dos Palmares, na Loureiro da Silva, que reuniu 28 moradores. Foi a primeira ocupação do MNPR no RS, onde, por quatro meses, até seu despejo, se construiu um pouco de dignidade, em um terreno da Prefeitura que estava abandonado há quase uma década. Próximo à área, que hoje está tomada pelo mato, fica a Escola Municipal de Ensino Fundamental Porto Alegre (EPA). Criada em 1995 para atender pessoas em situação de risco social e pessoal, vem, há anos, resistindo a diversas tentativas de ser transformada em um colégio de Educação Infantil, por desejo da prefeitura.

Ocupação durou quatro meses, em área central da Porto Alegre / Foto:Guilherme Santos/Sul21 

Em 2018, a EPA atendeu aproximadamente 115 alunos matriculados, com idades entre 15 a 60 anos. Além de três salas de aula, o espaço tem quadra coberta e biblioteca, com cerca de cinco mil livros, e lugar para os estudantes tomarem banho e lavarem suas roupas. No período de férias, há o projeto inverno, em que a escola segue funcionando pela manhã, possibilitando banho, almoço, televisão e computador. “Estar ali e não estar na rua, isso há é uma forma de redução de danos”, afirma Edson.

A Secretaria Municipal de Educação (Smed) confirmou que segue com o projeto de transformar o espaço um colégio de Educação Infantil. Segundo a assessoria da pasta, essa é a atual demanda exigida na região central da cidade. De acordo com Edson, a prefeitura pretende transferir as aulas da população de rua para a Escola Paulo Freire, perto do Planetário, no bairro Santana. Lá, conta, existe uma boca de crack bem na frente, e não chuveiros para os alunos tomarem banho. “Temos que ir para as ruas lutar, mas a galera sabe que estamos em um momento ruim, onde estão dando possibilidades dos homens (polícia) chegar e bater, agredir. Se tu parar para pensar, há tempo atrás, os guardas não andavam armados, a guarda municipal não tinha autorização para te prender, agora tem”, pontua.

Ações extremadas

Carol vive em uma uma barraca, em praça próxima ao estádio Beira Rio / Foto: Marcelo Ferreira 

Na madrugada do dia 25 de julho, às três horas da manhã, enquanto esperava seu companheiro, que é guardador de carro, retornar para a barraca onde vivem, em uma praça próxima ao estádio Beira-Rio, Ana Carolina Alves de Paula, conhecida como Carol, 36 anos, teve sua barraca queimada. Conforme seu relato, os responsáveis são membros da Brigada Militar.

Ao lembrar daquela noite, ela se emociona: “Foi horrível, queimaram meus documentos recém feitos, meu telefone com o contado dos meus familiares, tudo perdido. Se não fosse a ajuda de pessoas como a “Bem” (Liliane Oliveira), eu estaria dormindo só com um cobertor embaixo da chuva. Não faço nada para ninguém”, lamenta. Na ocasião, ao tentar defender sua “dona”, seu cachorro, o Veio, foi atingido.

Veio, o cão de Carol, sob as cinzas de seus pertences queimados / Foto: Reprodução  

Carol conta que foi a primeira fez que algo dessa natureza aconteceu. Ela, que também é guardadora de carro, estudou até a segunda série. Com pais falecidos, tem quatro irmãs e um irmão, e também uma avó. Natural da Restinga, ela conta que as fugas constantes de casa, sem motivo algum, a fizeram parar na rua, aos 12 anos de idade. “Minha família quer que eu volte, mas estou acostumada. Na rua tenho mais conhecimento, na rua a gente faz mais amizade”, relata. A escolha de não ir para albergues é por motivo de segurança, pois “lá tem que se cuidar muito”.

Sobre a prefeitura, em sua memória não existe apoio, apenas a lembrança de agentes do poder público a fazendo ir de um lugar para outro. “Já passei por essa situação, ano passado tentaram levar minha barraca. Fui atrás e disse para devolver, eles não querem lona, tenho que defender o que é meu”, afirma. Apesar da sua relação com a rua, Carol diz sentir falta de morar em uma casa só sua. “No futuro, eu pretendo estar dentro de uma casa. Para ter mais cuidado e tranquilidade, não me preocupar de eles virem tirar, queimar”, desabafa. Liliane, a quem Carol se referiu, foi quem a acompanhou para fazer o boletim de ocorrência, que está em processo de investigação.

Carol e seu cão / Foto: Marcelo Ferreira 

“Sobrevivência é a palavra para quem vive na rua”, afirma Edson. “É um mundo onde tu vê um monte de coisa que, quando as pessoas estão dormindo, não conseguem ver. A gente vê pessoas sendo queimadas, mortas, brigadiano se ‘arriando’ no pessoal. A gente vive na rua porque tem o livre arbítrio de viver, até dizer ‘chega’”.

Há oito anos militando no MNPR, Edson entende que o movimento é importante na luta por políticas públicas e também para que a pessoa conheça os direitos que a população em situação de rua tem. “Eu agora tenho um projeto onde eu consigo trabalhar e pagar minhas contas. O caminho é esse, fazer uma articulação por fora, porque o atual governo não dá assistência nenhuma”, ressalta.

Políticas públicas e ações paliativas 

A estimativa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2016, aponta que existem cerca de 101.854 pessoas vivendo em situação de rua no Brasil. As políticas públicas voltadas  especificamente para essa população são recentes no Brasil. Durante o governo Lula, em 2009, através do Decreto n° 7.053/2009, foi instituído a Política Nacional para a População em Situação de Rua. Nela, foi determinada a criação de uma rede de apoio articulada com gestores locais e sociedade civil.

Em Porto Alegre, em maio de 2018, o prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB), apresentou o Plano Municipal de Superação da Situação de Rua, uma ação integrada entre os órgãos de saúde e assistência social do município, para oferecer “início, meio e fim”, nas palavras do prefeito, à população de rua da capital. O objetivo do programa seria qualificar o atendimento já existente e ampliar as oportunidades de moradia e geração de renda. O plano permite a terceirização e a “parceirização”.

Para Edson, o que era precarizado está ficando pior. “O serviço está sendo terceirizado, é uma conjuntura destruindo a outra. Estamos perdendo muitos direitos que o movimento adquiriu”, afirma. Suas críticas também atingem o aluguel social. “Ele funciona por seis meses, renovado por mais seis, após isso, se a pessoa não conseguir se manter, volta para rua. É um auxílio provisório”. Além disso, conta, quem acessa uma moradia perde todo o vínculo com a assistência social.

Na opinião de Veridiana, o atual prefeito vem desmontando a política de assistência social na cidade. “Ele está entregando os espaços de acolhimento institucionais para as Ongs e entidades privadas”, aponta. Apesar de ver como positivo no plano o oferecimento de um eixo de trabalho, onde as pessoas incluídas aprendem a confeccionar muitas coisas, ela entende que isso não garante o futuro financeiro. “Onde está a parceria com o empresariado, para quem o prefeito Nelson Marchezan governa, a fim de oferecer vagas de trabalho efetivas a essas pessoas? Quando terminar o projeto, onde elas vão morar e trabalhar?”, questiona.

Veridiana Farias Machado é apoiadora do MNPR / Foto: Divulgação CRP-RS 

Abaixo, confira a entrevista com Veridiana, que trabalha há 19 anos com a população adulta em situação de rua em Porto Alegre.

Brasil de Fato RS: Qual é o tamanho do déficit habitacional, quando se trata das pessoas em situação de rua?

Veridiana: O déficit habitacional é enorme, não há efetivamente uma política de habitação destinada a essa população. Existem hoje, somente em Porto Alegre, dito pelo Ministério Público Estadual, 48 mil imóveis abandonados. Desses, 6 mil são públicos: do município, do Estado e da esfera federal. Se houvesse uma articulação entre os governos para transformar esses imóveis em moradia popular, muita gente realmente sairia das ruas. Só que cada governo que entra prefere fazer projetos que tem início, meio e fim.

A prefeitura é uma má pagadora dos aluguéis sociais e isso é histórico. Já soubemos de pessoas em situação de rua que foram incluídas em aluguéis sociais e que a prefeitura pagou alguns meses e depois, não pagou mais, e essas pessoas foram despejadas. Voltaram para as ruas, algumas até violência sofreram de alguns proprietários de imóveis. Fora os espaços que são alugados, geralmente são cubículos e verdadeiras espeluncas, sem condições nenhuma em relação à estrutura física e ambiência dos espaços. O aluguel social hoje está com o nome bonito de House First, o Moradia Primeiro. Só que é o mesmo velho aluguel social que conhecemos. Qual a condição que o povo acha que terá um espaço para alugar cujo valor é de R$ 500 por mês, válidos por seis meses, podendo prorrogar por mais seis?

BdF RS: Como você analisa a realidade da população em situação de rua em Porto Alegre?

Veridiana: A realidade das pessoas em situação de rua em Porto Alegre está cada vez mais crítica. Agora, além de não haver efetivamente um projeto de moradia para esse público, o prefeito vem desmontando a política de assistência social na cidade. Ele está entregando os espaços de acolhimento institucionais para as Ongs e entidades privadas. Já acabou com o único Centro POP que era público, agora está fazendo isso com o Albergue Municipal, que atendia na Comendador Azevedo. Depois, quer se desfazer dos dois abrigos municipais: o abrigo Marlene (batizado com este nome em função de uma mulher que se chamava Marlene e que estava em situação de rua e morreu de frio) e o abrigo municipal Bom Jesus. Esses dois abrigos estão constituídos em prédios próprios da prefeitura e sabe-se lá para onde vão quando for realizada a parceirização.

Sabemos que a entidade que pegou para prestar os serviços, abrindo dois albergues, tem escolhido locais bastante afastados e sem condições adequadas ao serviço que deve ser prestado. Tivemos notícias pelos bastidores, pois não há transparência nenhuma no processo, que houve uma avaliação da própria Fasc, que não aprovou um dos locais onde seria o albergue. Também houve despejo em um abrigo da Fasc que atendia a famílias em situação de rua. Os trabalhadores chegaram para atender e havia um oficial de justiça com ordem de despejo para todos. As famílias tiveram que ser separadas e nem mesmo os trabalhadores sabiam o que fazer.

Cabe ressaltar que esse processo não está sendo feito com transparência ou participação dos espaços de controle social, como o Conselho de Assistência Social ou o Comitê Municipal de Acompanhamento e de Monitoramento das Políticas Públicas para as pessoas em situação de rua, onde o movimento senta com o governo para avaliar e apontar como devem ser construídas as políticas, nem com os trabalhadores públicos que tem anos de experiência nessa política e no atendimento a esse público.

BdF RS: Em maio de 2018, o prefeito Nelson Marchezan Júnior apresentou o Plano Municipal de Superação da Situação de Rua, uma ação integrada entre os órgãos de saúde e assistência social do município para oferecer “início, meio e fim”, nas palavras do prefeito. Como tu avalias esse programa?

Veridiana: O Plano municipal de superação que o prefeito apresentou em 2018, dizendo que resolveria a questão da situação de rua na cidade, é mais um projeto com início, meio e fim, que conta com uma verba da Secretaria Nacional de Álcool e Drogas, um edital de R$ 1,8 milhão que, provavelmente, terá recursos devolvidos porque não conseguiram incluir nem um terço das pessoas que deveriam ser incluídas, justamente porque muito pouca gente quer alugar imóveis para a prefeitura. Daí, tempos atrás tivemos que ouvir na mídia o discurso da despreparada Comandante Nádia, secretária do Desenvolvimento Social, dizendo que a responsabilidade era dos trabalhadores da Fasc e das equipes de abordagem, que não conseguiam "convencer" as pessoas a irem para esses espaços. Na mesma época, ela andou dizendo que a população de rua não poderia ocupar as praças porque as pessoas tinham o direito de passear com seus Pets, um absurdo.

BdF RS: Que outras medidas existem? Como atua o poder púbico?

Veridiana: Para sair das ruas, é preciso um conjunto de políticas a ser oferecido para as pessoas, é um processo, principalmente para quem está há mais de 20 anos nas ruas. Geralmente, essas pessoas têm uma baixa escolaridade, a maioria cursou até a quinta série, trabalha em atividades precarizadas, tem um ciclo de desigualdade social e vem de famílias pobres e com estrutura precária, um nível de pobreza e vulnerabilidade muito grandes. É extremamente complexa essa situação. O Departamento Municipal de Habitação (Demhab) tem servido mais é para produzir mais pessoas em situação de rua com sua política de remoções das vilas e das ocupações. Eu conheço várias pessoas que moravam na vila Chocolatão e, quando ela foi removida, para ser feito estacionamento para os carros das pessoas que trabalham naqueles órgãos de justiça que tem por ali, muitas ficaram nas ruas. Se tornaram pessoas em situação de rua.

As remoções das pessoas em situação de rua na cidade de Porto Alegre continuam ocorrendo. Chegam secretarias como a SMAM ou o DMLU, a Guarda Municipal, a PGM e até mesmo a Brigada Militar, e enxotam as pessoas dos lugares, muitas vezes, com violência e retirando seus pertences, os únicos pertences que possuem. Isso deveria ser crime.

Acabaram também com o único restaurante popular que o MNPR lutou tanto para que os governos reabrissem. Era na rua Santo Antônio, justamente porque ali, naquela região, circulam muitas pessoas em situação de rua. Colocaram um projeto assistencialista no Ginásio Tesourinha, onde baixaram para apenas 150 refeições e somente para população de rua, tem que comprovar ainda. O restaurante popular, a política pública de alimentação, está na constituição, ela é para quem dela necessitar: idosos pobres, comunidade que não tem como se alimentar, trabalhadores desempregados, quem varre as ruas e ganha muito pouco. Não deve ser assistencialismo e sim política pública.

BdF RS: Qual é o histórico das pessoas que foram parar nessa situação? Quem são elas? Quais são os principais desafios encontrados e como você avalia a questão do preconceito e a invisibilidade dessa população?

Veridiana: Sobre o histórico e perfil das pessoas que vivem em situação de rua: é uma realidade muito complexa. É um público extremamente heterogêneo. É, geralmente, um conjunto de questões que levam as pessoas a ficarem em situação de rua. Tem questões de vínculos familiares frágeis, outras de baixa escolaridade e desemprego. Falta de vontade e responsabilidade do poder público em efetivamente construir alternativas resolutivas para ofertar a essas pessoas, principalmente, junto com elas.

O preconceito é algo que atrapalha muito. O olhar preconceituoso da sociedade em relação a essas pessoas é algo que gera muito sofrimento, baixa estima. Tem também casos de pessoas com transtornos mentais que vivem nas ruas, e é bem vinculá-las aos serviços, ainda mais sem um local de referência. A questão das drogas é uma cortina de fumaça. É mais fácil dizer que não saem das ruas porque são drogados, vagabundos e não querem sair, do que realmente assumir a responsabilidade de oferecer políticas de verdade. Focar na questão do uso de drogas, para os governos, é muito cômodo. Reforça a ideia que a responsabilidade de estar na rua é somente do individuo e tiram da sua conta o que deveriam realmente fazer.

As mulheres são muito mais vulneráveis quando estão em situação de rua. As mulheres negras nessa situação são mais ainda e o público LGBTQi também é muito vulnerável. As mulheres sofrem muitos tipos de violências e abusos. Muitas vezes, dizem que preferem permanecer com um companheiro, mesmo que este lhes bata do que apanhar e ser abusadas por muitos. A rua não é um mundo fora do nosso mundo.

BdF RS: Como podemos reverter esse quadro, como podemos garantir o direito à cidade e a moradia a essas pessoas?

Veridiana: Para reverter o quadro, é preciso defender e garantir que as políticas públicas sejam prestadas de forma eficiente e isso sempre foi papel da luta dos movimentos sociais com suas redes de apoio. Ou seja, com todos aqueles e aquelas que sabem da importância de lutar sempre. Muito mais na ação direta, tipo a Ocupação Aldeia Zumbi dos Palmares, que o movimento da população de rua fez em 2018, no terreno da Loureiro da Silva, fruto de remoções violentas a um grupo que vivia há mais de cinco anos ao lado da Câmara de Vereadores. Essas pessoas não aceitaram e entraram para dentro do terreno, ficando lá por cinco meses, fazendo o debate com a sociedade, fortalecendo a relação com sua rede de apoio, mostrando que pode se organizar politicamente. Uma organização onde as pessoas em situação de rua tomaram para si mesmas a sua luta, com consciência e protagonismo, sendo apoiadas pela rede que entende a importância de estar junto nesses momentos. O resultado daquela luta foram 22 pessoas, das 30 que passaram por lá, que saíram das ruas por fortalecerem suas estratégias de luta. Isso ocorreu sem o governo oferecer nada, além do mais do mesmo: vagas em albergues e abrigos separando um coletivo que estava unido.

Nem todo mundo que está nas ruas quer ir para um albergue, muitos outros querem. Todos os serviços são importantes e devem existir. Quantos mais existirem, melhor. No caso da ocupação, eles queriam um espaço para morar e para trabalhar. Iam fazer uma cooperativa de trabalho. Foi naquele momento que se fortaleceu o projeto de pães Clube Amada Massa, que hoje mantém fora das ruas boa parte das pessoas que estiveram na ocupação e que pagam por si só seus aluguéis.

Imagina se tivessem conseguido um prédio ou algum lugar para morar e fazer a cooperativa, o quanto não estariam melhor? Essas pessoas precisam de trabalho, precisam de oportunidades. Agora há nesse projeto de superação, que o governo oferece, um eixo de trabalho onde as pessoas incluídas estão aprendendo a confeccionar muitas coisas. Ok, isso é muito legal. Mas onde está a parceria com o empresariado, para quem o prefeito Nelson Marchezan governa, a fim de oferecer vagas de trabalho efetivas a essas pessoas? Quando terminar o projeto, onde elas vão morar e trabalhar? A visibilidade sobre o assunto, que, principalmente, as mídias mais alternativas podem dar, é uma contribuição bem importante.

BdF RS: Você acredita que estamos vivendo um processo de higienização e de gentrificação, em especial na região central de Porto Alegre?

Veridiana: Esse processo de higienização nunca deixou de acontecer. Trabalhei na abordagem social e, em todos os governos que passaram pela prefeitura, uns mais outros menos, sempre houve solicitações de retirada das pessoas em situação de rua de alguns locais da cidade. Isso é histórico. Acontece que, em alguns governos progressistas, os 3% do projeto Minha Casa Minha Vida, por exemplo, ainda andavam um pouco para incluir esse público. Agora, não se conta mais com isso. 3% ainda é muito pouco, mas a fila andava e algumas pessoas em situação de rua conseguiam ser incluídas. Agora resta somente as remoções como política. A higienização das cidades dos "corpos negros e pobres" não é de hoje, sempre existiu. A Restinga nasceu assim, bem como outros bairros periféricos. Embranquecer e elitizar os bairros mais centrais é plano de governos, mais ainda dos de direita. Digamos que seja plano de uma sociedade ainda muito racista. Vamos lembrar que a maior parte da população de rua é negra, desterritorializada dos seus quilombos.

BdF RS: Qual é a situação dos albergues e abrigos, atualmente?

Veridiana: Hoje existem dois abrigos municipais. Abrigos são espaços de acolhimento social onde as pessoas moram por um tempo até se organizarem para sair. É diferente de albergue. As pessoas confundem o tempo todo isso. Albergue é onde acontece pernoite, as pessoas ficam, tomam banho, jantam, dormem, tomam café da manhã e saem de manhã. Hoje, existem três albergues: um municipal que está prestes a ser parceirizado e dois conveniados: o Felipe Dhiel, ao lado da Igreja dos Navegantes, e o Dias da Cruz, na Av. Azenha.

Os dois abrigos municipais, que fazem um trabalho muito importante e que não aparece, conseguem com um tempo melhor ajudar para que as pessoas a se organizem realmente para sair das ruas. Eles também estão para ser parceirizados. Sabe-se lá quem vai pegar a licitação, para qual território irão e como irão atender. Ou seja, provavelmente, serão mais precarizados. Marchezan vai mexer em time que está ganhando.

BdF RS: O que tu aprendeu com as pessoas em situação de rua nesses anos todos?

Veridiana: Aprendi muitas coisas, parte do que sou hoje se constituiu do que aprendi com eles. É uma população que sabe exatamente quando a gente está sendo franca, quando tem verdade naquilo que se pretende fazer e quando é com eles, qando é junto. Aprendi a exercitar muito a escuta, a empatia, a trabalhar e investir muito no vínculo. São muitos os aprendizados. A divisão do pão, o acolhimento às dificuldades do outro e a valorização do saber da rua, esse saber é só de quem realmente vive ou viveu a rua. É a “ruaologia”, ciência de quem vive a rua. Palavra inventada pelo Carlos Henrique, um dos que vive em situação de rua há bastante tempo.

Outros olhares

Jornal Boca de Rua é feito por pessoas em situação de rua, que o vende para geração de renda / Foto: Divulgação Boca de Rua O Filme 

Com intuito de dar voz e vez aos moradores de rua da capital gaúcha, em 2001, durante o 1º Fórum Social Mundial, foi lançado o jornal Boca de Rua, pensando e produzido quase exclusivamente pela população em situação de rua. Ele foi idealizado pelas jornalistas Rosina Duarte, Clarinha Glorck e Eliane Brum.

“A gente tem um jornal diferente, um jornal que denuncia o que acontece com pessoas em situação de rua. Os grandes meios só vão quando tem repercussão, para ganhar mídia. Eles falam por cima, eles não falam a realidade da rua, tem foco em denúncia mas não chegam na pessoa para saber porque ela está na rua. Eles querem criticar e não querem saber o problema que a atinge, o que vai fazer ela sair daquela situação. Tem mídias alternativas que apoiam e outras que vem para derrubar. A gente faz (jornal Boca de Rua) isso para mudar, para mostrar que não é bem assim”, finaliza Edson.

Assista o documentário produzido sobre o jornal:

Estudos e mapeamentos

Em 2017, a Assessoria Multiprofissional de Porto Alegre (Camp) lançou o Mapeamento da População em Situação de Rua na região metropolitana de Porto Alegre, que pode ser acessado, clicando aqui.

Recentemente, a estudante Talita Fernandes Gonçalves apresentou a sua dissertação de mestrado: Rua, substantivo feminino: Mulheres em movimento e o direito ao corpo na cidade. Confira, clicando aqui

Edição: Marcelo Ferreira