Em 2009, quando Porto Alegre foi anunciada para ser uma das sedes da Copa do Mundo de 2014, o alvoroço tomou conta da cidade. Viu-se se ali, por parte do poder público e de boa parte de sua população, não apenas uma forma de fomentar a economia, mas também uma possível alavanca de antigos projetos estagnados e outros novos. Entre eles, a duplicação da Avenida Tronco, uma alternativa de deslocamento na Zona Sul de Porto Alegre. Das 1.525 famílias que precisavam ser removidas para dar lugar ao empreendimento, restam, atualmente, 55, residentes em 51 casas, a serem reassentadas.
Os valores ofertados pelo poder público não garantem a manutenção da situação original das famílias, aponta o líder comunitário Lídio Santos, 40 anos, que mora há 32 anos na Av. Silva Paes, na Vila Maria. Na sua avaliação, a obra não traz benefício nenhum para a comunidade, apenas remove projetos de vida em troca de “uma freeway” para facilitar o trânsito. Com seu relato, a Brasil de Fato RS segue sua série de reportagens sobre a questão da moradia em Porto Alegre.
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A Lei Orgânica da capital, no art. 208, destaca: “O estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano deverá assegurar: I – a urbanização, a regularização e a titulação das áreas faveladas e de baixa renda, sem remoção de moradores, exceto em situação de risco de vida ou à saúde, ou em caso de excedentes populacionais que não permitam condições dignas à existência, quando poderão ser transferidos, mediante prévia consulta às populações atingidas, para área próxima, em local onde o acesso a equipamentos e serviços não sofra prejuízo, no reassentamento, em relação à área ocupada originariamente”. Para as pessoas envolvidas com a obra da Tronco, isso não é assegurado. As famílias remanescentes lutam para que se garanta moradia digna.
“Não somos contra a obra, já que veio, não temos como impedir, mas queremos sair daqui com dignidade. Queremos o valor digno para comprar uma casa digna. No meu caso, principalmente para minha mãe e para casa de religião de matriz africana dela”, afirma Lídio. Sua casa é uma das últimas do trajeto a ser removida. Para as famílias se mudarem, a prefeitura oferece um bônus-moradia com valor em torno de R$ 78 mil e aluguel social de R$ 500. Valores bem abaixo dos preços cobrados no mercado imobiliário por um imóvel capaz de garantir uma moradia e situação similar às que já vivem as famílias.
A duplicação da Avenida Tronco foi iniciada em março de 2012. Orçada em R$ 165 milhões, foi incluída nos projetos de infraestrutura que contariam com recursos do governo federal em preparação para a Copa do Mundo de 2014. Seu trajeto prevê interligação entre as avenidas Icaraí e Gaston Mazeron, na região conhecida como Grande Cruzeiro. Seus 6,2 km de extensão funcionariam como uma alternativa de desvio do trânsito em torno do Estádio Beira Rio nos dias de jogo, e seria uma importante via de ligação entre a Zona Sul e o Centro da cidade. Até o momento, só 1,7 quilômetro foi concluído.
Obras retomadas
Paralisada em 2016 e retomada em junho de 2018, a Tronco está com 40% das obras executadas e vem sendo tocada lentamente. O consórcio responsável é formado pela Construtora Pelotense, Toniolo Busnello e Brasília Guaíba. O empreendimento está no trecho 3 e 4, com serviços de pavimentação, drenagem pluvial, esgoto cloacal, rede de água e rede de iluminação. De acordo com nota publicada no site da prefeitura, desde a retomada da obra, em 2018, já foram reassentados os moradores de 52 casas na área. Ainda faltam 50 residências, que a prefeitura espera retirar até o final deste ano.
As famílias que escolheram o aluguel social ainda aguardam a construção das unidades planejadas para a região. Já as que optaram pelo bônus, recebem uma indenização para a compra de uma nova residência. “Ao todo, são 195 famílias cadastradas para o bônus e com garantia de recurso financeiro empenhado. Com um investimento total de R$ 31,3 milhões, serão construídas 356 unidades em três condomínios: Jacuí, Banco da Província e Dona Zaida, que devem ser entregues em um prazo de 18 a 24 meses, a partir da ordem de início da obra”, aponta a nota da prefeitura.
O processo de remoção envolve famílias que não querem sair do local onde vivem. E também negociações e disputas judiciais, como é o caso da família Santos. Em maio desse ano, a prefeitura entrou com uma ação de reintegração de posse do imóvel, alegando tratar-se de uma área pública que foi invadida. Contudo, Lídio afirma que isso é uma mentira, que a casa foi comprada pela sua mãe em 1988. “Temos o recibo de compra e venda”, afirma. No terreno, moram hoje ele, sua mãe e quatro irmãos. A liminar da reintegração de posse, conta, foi derrubada no dia 11 de junho.
A negociação com o poder executivo municipal começou ainda em 2012, quando a família optou pelo bônus-moradia. Para isso, Lídio informa que propôs à prefeitura juntar as indenizações de todos os seus membros, mais a da casa de religião de matriz africana, o que foi recusado pela prefeitura. O líder comunitário aponta que, devido ao valor oferecido pela prefeitura, é difícil encontrar imóvel com as mesmas condições. “Quando se encontra, é em regiões afastadas, na periferia, longe de tudo”, aponta.
Para ele, somente com a junção das indenizações será possível conseguir espaço em outro lugar que seja compatível com a casa de religião e o abrigo dos quatro núcleos familiares. “Queremos o valor digno, para comprar uma casa digna, principalmente para minha mãe e para casa de religião dela, que ela cultua há mais de 50 anos, e que faz um trabalho social na região, através da alimentação do povo”, alega.
Pressão para acelerar a remoção
Lídio conta que a Prefeitura está fazendo, novamente, uma grande pressão sobre os moradores que ainda permanecem no local. “Eles estão tocando o horror nas pessoas, fazendo um filme de terror. Na realidade, eles querem retirar as famílias até o final do ano”. De acordo com ele, essa pressão vem desde o início das discussões, ainda nos anos 2009 e 2010. Na época, as famílias se organizaram reivindicando “Chave por Chave”, em que sairiam somente quando estivessem com a chave da nova residência em mãos. “É por isso que lutávamos naquele momento. Como nós estávamos juntando muitos moradores no movimento, a prefeitura passou a ir de família em família e negociar individualmente. Isso foi desmobilizando”. Na ocasião houve pressão de vizinhos que acabavam pressionando outros vizinhos, e muitos aceitaram a oferta.
O líder comunitário afirma que muitos se arrependeram. “Teve moradores que entregaram a sua casa e foram para praia, Cidreira, Pinhal, Quintão, e tiveram que retornar devido a falta de emprego no litoral, e hoje vivem de aluguel. Outros foram para outras regiões que não têm a mesma estrutura daqui, e também se arrependeram. Foram induzidos e convencidos pelo poder público, com a ilusão de uma casa boa”, pontua.
Ele observa também que o Departamento Municipal de Habitação (Demhab) cria empecilhos para aceitar as casas que os moradores encontram e que o repasse da indenização, deveria levar 90 dias, chega a levar dois anos. “Teve uma família que estava dormindo na combi porque eles não pagavam a indenização. Essa família arrumou a casa, a documentação, chegaram até a entrar no imóvel. Pela demora do pagamento da indenização, o dono pediu a casa de volta e vendeu para outra pessoa. Foi só depois de um ano e pouco que eles pagaram”, exemplifica.
Como acontece em outras remoções, a exemplo do caso da Vila Nazaré, o governo municipal desconsidera no processo a questão dos comércios locais e a segurança dos moradores nas realocações. “Numa comunidade carente, pela falta de trabalho para sobreviver, as pessoas acabam fazendo comércio na sua casa, pegam uma peça e abrem um negócio. Ou como no caso, a casa de religião. E isso não é tratado, não é conversado. O Demhab alega que o trabalho deles é habitação e pagar indenizações das casas, e que Procuradoria-Geral do Município (PGM) seria responsável pelos comércios”, afirma.
Já em relação à segurança, é realidade nas periferias das cidades a existência de facções locais, às quais, muitas vezes, os trabalhadores e moradores ficam reféns. “Não é simplesmente retirar as famílias, tem a questão de risco de vida, o risco de ir para outra região. Isso o governo não entende, que tirar as famílias e mandar para qualquer lugar envolve toda essa questão da violência que está instalada”. Conforme relata, o simples fato de uma família da Cruzeiro se mudar para uma região dominada por um grupo rival pode levantar desconfiança e acabar em tragédia.
“É só abertura de rua, nada além disso”
Ao lado da casa de Lídio, restam entulhos do que um dia foi a moradia de um vizinho. Do outro, vive uma família que aguarda a indenização. Cruzando a rua, ficam casas que não são abraçadas pelo projeto, de um valor visivelmente mais alto que as que serão removidas. Ele conta que ninguém da prefeitura foi ao local fazer um levantamento do que de fato vale o seu terreno e sua residência.
Enquanto a questão não é resolvida, fica o sentimento de que o projeto só vai trazer asfalto e nada mais, sem nenhuma compensação para os moradores do entorno. “No projeto não tem uma praça, não tem um campo de futebol. Antes tinham três campos e duas praças. No atual, não tem espaço de lazer, não tem nada. É só abertura de rua, nada além disso”, denuncia. No projeto original, há o apontamento de revestimento de passeios, plantio de árvores, sinalização horizontal e vertical e uma ciclovia.
“Se tu vier no final da tarde, tu vai ver as crianças jogando futebol na rua, onde está a obra, porque não se tem esse espaço, não tem benefício nenhum para a comunidade. Quando concluir, as famílias vão ficar vendo os carros passar. Onde as crianças vão se divertir sem um espaço para brincar, para andar de bicicleta? Vai ser um perigo constante devido ao fluxo de carros, ônibus e, em dias de jogo, será ainda pior”, afirma.
De acordo com ele, foi encaminhado um pedido de conversa com a Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio (SMIC). A ideia é fazer uma negociação com os três poderes, incluindo ai o Demabh e a PGM, para achar um denominador comum. “Ninguém quer impedir, mas queremos dignidade, um espaço que respeite a estrutura familiar e demais serviços. Paguem um valor justo que a gente sai”, finaliza.
Dossiê relata violações
Em maio de 2015, o Comitê Popular da Copa de Porto Alegre divulgou o dossiê Copa do Mundo FIFA 2014 e as Violações de Direitos Humanos em Porto Alegre, traçando um panorama dos efeitos reais da Copa do Mundo e os impactos da mesma. Segundo o documento, “não houve Copa para muitas pessoas, principalmente para aqueles que, nesse processo, foram perdendo tudo o que tinham – seus pertences, suas casas, sua dignidade, seus direitos e até sua liberdade”. Acesse clicando aqui.
Entresonhos: documentário aborda remoções
Durante a Copa do Mundo, foi produzido um filme que narra o processo de remoção de uma família das imediações da Avenida Tronco. O documentário retrata o cotidiano da família de Tequila, que trabalha como padeiro e vendedor ambulante e mora na Vila Cruzeiro, em meio à competição. Assista:
* com informações do Sul 21
Edição: Marcelo Ferreira