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Há mais coisas no céu do que Bolsonaro e Mourão

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Afastar o presidente excêntrico antes da hora poderia, paradoxalmente, estabilizar esse bloco no poder e seu programa de exploração
Afastar o presidente excêntrico antes da hora poderia, paradoxalmente, estabilizar esse bloco no poder e seu programa de exploração - Foto: Marcos Corrêa/PR
Afastamento de Bolsonaro não implicaria na mudança do bloco dirigente no Brasil

Nos últimos dias a ideia do impedimento constitucional de Jair Bolsonaro, o impeachment, cresceu e transitou pelos mais variados setores, até mesmo foi citado como uma alternativa por liberais arrependidos ou assustados, entre os quais alguns conservadores e golpistas.

Não é sem motivo aparente. O conjunto de declarações e medidas do governo dá a dimensão de um presidente nada afeito à democracia e não submisso a Constituição Federal. Além do envolvimento com milícias criminosas, defesa de nepotismo, quebra de decoro diplomático e intervenção em universidades federais; declarações homofóbicas, racistas e preconceituosas, incentivo ao armamento, proselitismo autoritário e apologia ao crime de tortura inundaram a política brasileira e correram o mundo em uma desconstrução sem precedentes dos avanços mínimos conquistados neste país, sejam eles econômicos, políticos e éticos. Bolsonaro é a banalização do mal, do cinismo, do escravagismo, do ódio pelo ódio. Trata-se, como se referiu Hannah Arendt acerca de Adolf Eichmann, de um homem comum na sua mediocridade e excentricidade que encontrou as condições políticas para a banalização e mitificação do ódio e do mal. Pois é sobre essa condição política, a que permite o ressurgimento do reacionarismo fascista, que devemos nos debruçar e investir o melhor das energias democráticas para reverte-la e não parecer acreditar que a simples remoção do homem banal e excêntrico, do homem mal, mudará o quadro.

Bolsonaro jogou o país em uma luta ideológica entre a barbárie e a civilização. Ele consolidou um campo de sustentação baseado em uma articulação entre valores e políticas reacionárias e fascistas com o ultra neoliberalismo. 

Exatamente por isso não podemos incorrer no erro de reduzir o debate político e ideológico ao tema do impeachment de Bolsonaro. Seria dar “cancha” livre para esse bloco, ultrarreacionário, implementar um programa de eliminação de direitos sociais e trabalhistas com nova legitimidade, descartando seu presidente excêntrico e banal. Jair Bolsonaro é uma aberração sob o ponto de vista humanista e civilizatório, mas seu governo é mais do que isto; trata-se de um bloco de forças sociais, empresariais e burocráticas, neoliberal e autoritário, com relações internacionais, disposto a muito para consolidar seu poder e riqueza. 

O impeachment é uma ferramenta própria da democracia, prevista na Constituição do Brasil, mas sua utilização não pode se prestar, como no caso da deposição da Presidenta Dilma, a servir de peça de manobra para golpistas consolidarem seu poder a despeito da soberania popular. Uma movimentação para afastar Bolsonaro sem base popular organizada pode acabar consolidando o bloco reacionário neoliberal que poderia desejar tal desfecho, ainda mais legitimado na “opinião pública”, sempre tão efêmera quanto manobrável. A proposta de impeachment desassociada de uma nova correlação de forças e de um movimento democrático ascendente, assim, incorre em dois erros. O primeiro deles é uma má interpretação do que representa Bolsonaro com a decorrente confusão sobre o verdadeiro adversário dos interesses populares, e o segundo repousa em um crença ingênua no caráter republicano e neutro das instituições estatais do sistema político. 

Em que pese a tentação, não podemos reduzir Bolsonaro a sua excentricidade, a sua dimensão individual mas considera-lo a partir de sua condição política. É a “pessoa jurídica” e não física que deve ser enfrentada. Ele é hoje a expressão articulada de um bloco de forças distintas mas que converge na necessidade de redução da democracia no Brasil, para implementar medidas de subtração da riqueza do trabalho e da soberania nacional. As duras medidas de espoliação do trabalho, como a reforma trabalhista e da previdência, somente são possíveis em um ambiente hegemônico onde as causas democráticas, de defesa dos pobres e dos trabalhadores e de conceitos igualitaristas estejam na defensiva. Esse bloco é inteiramente subordinado e, portanto, apoiado e sustentado pelo capital financeiro internacional, totalmente interessado no esbulho da riqueza contida no Brasil, inclusive da riqueza da capacidade de trabalho da classe trabalhadora. 

O afastamento de Bolsonaro não implicaria na mudança do bloco dirigente no Brasil. Afastar o presidente excêntrico antes da hora poderia, paradoxalmente, estabilizar esse bloco no poder e seu programa de exploração. 

A correlação de forças não indica uma reação dos setores democráticos, nacionalistas, de valores humanistas e no sentido de um novo governo de caráter, ao menos, nacional e distributivista. Portanto, a política do impeachment não estaria assentada em uma alteração da hegemonia política e da correlação de forças em favor da maioria e da democracia; mas estaria assentada na ilusão de uma certa “reabilitação” do caráter republicano das instituições estatais como o STF e Congresso Nacional. Uma espécie de ilusão na restauração da neutralidade dessas instituições. 

Ora, o Estado não é neutro, tampouco a democracia. Eles respondem à hegemonia dominante e suas classes dirigentes. Essas instituições estatais cumpriram um papel fundamental para a legitimação da ascensão ao governo de bloco reacionário e neoliberal. A correlação de forças indica que essas instituições atuarão para a estabilização desse programa e desse bloco, mesmo que para isso seja necessário o impeachment de Bolsonaro para substituí-lo por alguém mais equilibrado e articulado para dirigir um governo com essas tarefas. Seria pouco provável que as instituições que deveriam zelar pela Constituição Federal, como o STF e o Congresso Nacional, garantissem a convocação de eleições como está na norma, para falar objetivamente do que deveríamos defender. 

O resultado mais plausível para se projetar a partir do impeachment precipitado seria o da reorganização desse bloco reacionário neoliberal com maior capacidade dirigente, a partir de uma rearticulação do empresariado, da burocracia e da maioria conservadora no Congresso. Não há condições, hoje, de se imaginar que o fim da presidência de Bolsonaro fosse seguido pela convocação de eleições no Brasil, mas sim por mais um golpe contra a Constituição Federal, através de um novo acordo entre as elites que levaria sua substituição por um quadro mais preparado, do mesmo campo, para o que já se apresentam o Vice-Presidente da República e o Presidente da Câmara dos Deputados. Seria a forma de atingir a construção de um governo passando ao largo de eleições justas e limpas. O impeachment funcionaria como uma espécie de lavagem constitucional do golpe político continuado, aberto em 2015; exatamente em um momento que o impeachment da Dilma, a operação Lava-Jato e a prisão de Lula sofrem seus mais profundos questionamentos. O impeachment precipitado pode ter um efeito reverso, ser a chave para a derrota definitiva da narrativa sobre o golpe e a deslegitimação dos processos da Lava-Jato. 

A defesa dos interesses nacionais, de seu patrimônio e de suas riquezas, e dos interesses dos trabalhadores, como a reversão da reforma trabalhista e previdenciária e o descontigenciamento de recursos públicos, precisa ter outra tática política. É preciso derrubar não o presidente, mas as bases políticas do bloco reacionário e neoliberal que sustenta o governo Bolsonaro. Precisamos desconstituir as bases populares e as alianças que sustentam o governo para então projetar novo governo de caráter não neoliberal e mão o inverso. A denúncia da operação Lava-Jato, o desmascaramento do papel da burocracia golpista, a denúncia das privatizações, a luta pela obstaculização das reformas trabalhistas e previdenciária, o combate ao monopólio da mídia privado, estão entre essas tarefas centrais e são chaves para alterar a correlação de forças na sociedade. É preciso questionar e lisura das últimas eleições e a legitimidade de seu resultado, o que afeta todo o governo e não somente seu presidente. A mobilização em defesa da universidade pública, dos direitos fundamentais, da sustentação das denúncias da Vaza-Jato, continuam a ser as movimentações com maior capacidade aglutinadora e de constituição de uma frente anti reacionária. É preciso derrotar esse governo no conjunto. O centro de ação do campo popular neste país deve ser a denúncia dos fatores e sujeitos que sustentam a super exploração do trabalho e o crescimento do fascismo e do reacionarismo. 

A amplitude e simbolismo do ato de desagravo ao Glenn Greenwald, neste 29 de julho, mostram que as revelações sobre o processo farsesco e fraudulento da Lava Jato tem grande capacidade aglutinadora de um novo campo político em formação no país e que novas revelações sobre ainda poderão ampliar essa frente e, em um ambiente de grave crise econômica e de emprego e trabalho, modificar essa correlação de forças. 

A queda de Bolsonaro deve ser a queda do bloco que o sustenta e não só do presidente, caso contrário o bloco reacionário terá mais legitimidade e, portanto, força para implementar suas medidas e avançar na situação autoritária. É preciso expor suas bases ilegítimas para substituí-lo através da restituição da soberania popular, nas eleições gerais, sem golpe continuado.

Edição: Marcelo Ferreira