A elite brasileira é escravocrata, racista e ultraconservadora
“Eu prefiro pensar que o ódio aos pobres, aos paraíbas, a tudo o que cheire a povo brasileiro nos levou a isso e, pior ainda, não nos deixa sair disso. E que, no fundo, tudo aceitam, menos o paraíba que nos fez acreditar que o país era de todos e, por essa heresia, há de ser posto a dormir no frio de uma cela em Curitiba” (O ‘paraíba’, Fernando Brito, em www.tijolaco.net, 21.07.19).
A expressão usada pelo Presidente da República em cochicho com o Ministro Chefe da Casa Civil, em pleno Palácio do Planalto, antes de começar uma entrevista com jornalistas e correspondentes estrangeiros, referindo-se aos nordestinos como ‘paraíbas’ e pedindo para excluir o Maranhão e seu governador, dito o pior de todos, de qualquer verba e recurso, não é gratuita, muito menos declaração impensada. Aliás, o desrespeito e o preconceito se mantiveram, nas palavras do Presidente em Vitória da Conquista, na entrega do aeroporto Glauber Rocha, nome jamais citado na solenidade: “Não estou na Bahia, nem no Nordeste. Estou no Brasil.” É como se eu dissesse, estando na minha terra: “Não estou em Santa Emília, não estou em Venâncio, não estou no Rio Grande do Sul. Estou no Brasil.”
Cabe lembrar que no Rio de Janeiro, onde o atual Presidente da República cresceu e mora, a expressão ‘paraíba’ – em São Paulo, é ‘baiano’-, é usada de forma depreciativa, preconceituosa, racista sobre quem veio do Nordeste: os nordestinos que vieram de longe, fugidos da fome e da seca, só servem para atrapalhar, ou no máximo para fazer pequenos serviços de limpeza, não sabem nada, são analfabetos, são de segunda classe, não sem bem gente, na prática muitas vezes escravos.
Pelo menos duas situações/expressões ‘explicam’ a fala presidencial. São fatos concretos, realidades das últimas décadas, acontecidos a partir da eleição de Lula Presidente da República.
A primeira: ‘O aeroporto virou rodoviária’. A expressão começou a ser usada no momento em que, fruto do aumento real do poder aquisitivo do salário mínimo, das políticas públicas em favor dos mais pobres e dos excluídos, da diminuição, ainda que mínima, da desigualdade social e econômica, da melhoria de vida de brasileiras e brasileiros nos governos Lula e Dilma, os aviões começaram a ser usados por quem nunca tinha viajado de avião. Misturaram-se nordestinos e trabalhadores/as à classe média, viajando por todo Brasil e até para o exterior.
O aeroporto tornou-se rodoviária, na expressão preconceituosa dos historicamente dominantes. Um espaço sagrado começou a ser ocupado por quem nunca o fizera antes, e estava, portanto, fora do seu habitat natural, que só podia ser, quando muito, uma rodoviária, como antigamente foi o pau de arara que levou Lula e família a São Paulo, como bem retrata o filme ‘Lula, o filho do Brasil’, ou então como faxineiros de corredores e limpadores de banheiro de aeroportos.
A segunda heresia, mais forte que o aeroporto tornar-se rodoviária: pobres e pretas e pretos, filhas e filhos de trabalhadoras e trabalhadores começaram a entrar e estudar, aos milhares, na Universidade. E, heresia absoluta, inaceitável para os valores e padrões dominantes, mas fruto de sua dedicação ao estudo e à sua capacidade, passaram a disputar Bolsas de Estudo no exterior, a fazer pesquisas vitoriosas e premiadas nos Institutos Federais.
A declaração presidencial e os dois fatos acima mostram, mais uma vez, como e o quanto a elite brasileira é escravocrata, racista e ultraconservadora, não apenas neoliberal na economia. Podem ser tolerados o combate e o fim da fome, mas não se tolera pobre em avião e na Universidade. O ‘paraíba’ Lula e a ‘terrorrista’ Dilma subverteram todas as regras históricas, todas as leis não escritas de exclusão social, ao tirarem do papel e fazerem valer a Constituição Cidadã na vida e na prática da sociedade brasileira. Os oprimidos passaram a ler e pôr em prática a pedagogia libertadora de Paulo Freire, declarado, outra heresia, Patrono da Educação brasileira.
Nos anos 1960/1970, início dos anos 1980, os ‘paraíbas’, exilados de sua terra por falta de comida e dignidade, vieram para o Sul, fizeram as grandes greves do ABC, organizaram as Oposições Sindicais e o sindicalismo combativo, as lutas contra a carestia, as ocupações na cidade e no campo, tornaram-se cidadãos. Nos anos 2000, revolucionaram seus próprios campos e cidades, ficando no Nordeste, e hoje são exemplo para o mundo.
O ódio e o preconceito seculares cresceram, revelando-se na boca da Presidente da República, que, inclusive, é descendente de imigrantes obrigados a sair da sua terra. Os ‘paraíbas’ e os ‘baianos’ não precisam mais sair da sua terra para fugir da fome e da miséria. Estão ‘leves livres e soltos’, elegem governos progressistas e de esquerda, têm autonomia e pensamento próprios. E isso irrita e constrange profundamente a elite colonialista e escravocrata.
O simbolismo do ‘paraíba’ preso em Curitiba, que continua falando e sendo escutado, que segue líder brasileiro, latino-americano, mundial, podendo até ganhar o Prêmio Nobel da Paz, e que mantém um Acampamento nas barbas da Polícia Federal há mais de um ano, os acampados desejando-lhe bom dia, boa tarde, boa noite todos os dias, deixa as elites de direita assombradas.
‘Paraíbe-se’ dizem hoje paraibanos, pernambucanos, cearenses, potiguares, maranhenses, baianos, sergipanos, alagoanos. É o canto de alegria e orgulho que se estende por todo Brasil por quem acredita no sertanejo e sua força, sabe que o povo nordestino, as/os brasileiras/os do semiárido brasileiro estão mostrando seu valor, estão sinalizando esperança, futuro e soberania com suas experiências e práticas de superar a fome e a seca, da construção de cisternas para ter água para beber e alimentar plantas, flores e frutos, práticas de solidariedade, vida e dignidade.
Edição: Marcelo Ferreira