Algum tempo atrás o renomado cientista brasileiro Rogério Cézar Cerqueira Leite, em artigo na Folha de São Paulo (Desvendando Moro, 11/10/2016), escreveu comparando o moralismo punitivista de Moro com o de outro personagem da história universal, o frade dominicano Jerônimo Savonarola, também moralista e fanatizado por sua ideia própria de mudar os costumes de Florença e de fazer justiça, no final do século XV, segundo suas próprias convicções pessoais.
O artigo do professor Cerqueira Leite teve enorme repercussão e levou o então juiz Sérgio Fernando Moro a questionar a Folha como permitira publicação de tal tipo de artigo, classificado pelo magistrado como difamatório.
Pois bem, a analogia proposta pelo professor Cerqueira Leite ainda rende. Savonarola se colocava como a voz do próprio Deus, acima do bem e do mal. Nada o alcançava, e cercado de um grupo sectário que o seguia, quando chegou ao poder máximo em Florença, pontificava e punia.
Quando Florença foi invadida pela França, Savonarola colocou-se ao lado do rei da França.
Quando o rei francês se foi, restou desemprego, miséria e a economia de Florença quebrada. As cidades vizinhas e o Papado em Roma, desafiados pelo poderoso frade, cortaram negócios com Florença e com seus comerciantes. O povo começou sentir na pele as consequências e a colocar em Savonarola as culpas das desgraças, da fome, das falências, do desemprego e a cobrar soluções.
Dizia-se ele, porém, profeta com mensagens diretas de Deus e daí viria sua autoridade e por isto fazia suas próprias leis. Desafiava em seus sermões que, se assim não fosse, que Deus o fulminasse.
Apareceu então um frade franciscano, frei Francisco de Puglia, que desafiou Savonarola a uma Prova de Fogo, as famosas “ordálias”, populares na época medieval. Ambos atravessariam uma fogueira, especialmente preparada, e se Savonarola fosse mesmo representante direto de Deus, as chamas não lhe causariam qualquer dano.
O franciscano dizia saber que morreria assado nas chamas, mas que desmascararia a falsa aura de santidade do moralista.
Savonarola amarelou. Não topou a prova. Disse que isto seria colocar Deus à prova e que jamais o faria.
Mas um confrade seu, do mesmo convento, topou a ordália em seu nome.
Marcaram o dia e a praça da cidade lotou para ver quem passaria incólume sobre a fogueira, armada e preparada para que os dois entrassem nela ao mesmo tempo com igual intensidade de fogo.
O representante de Savonarola veio com um hábito (veste religiosa) velho. Os franciscanos não aceitaram. Poderia ser um hábito encantado e à prova de fogo, que expressaria a santidade do hábito e não do frade. Enfim, os dois de hábitos novos: o dominicano de branco e o franciscano com o marron.
Aí o dominicano agarrou-se a um crucifixo para cruzar o fogo. Os franciscanos também não aceitaram. Teria que ser sem nenhum objeto que pudesse dar qualquer proteção. O dominicano, por fim, quis entrar no fogo segurando o Santíssimo Sacramento, a hóstia consagrada. Longo debate teológico se estabeleceu e os franciscanos também vetaram o uso da eucaristia, símbolo divino, que não poderia ser usado numa querela entre vis mortais.
Assim o dia foi passando entre uma desculpa e outra e nada dos dois se jogarem ao fogo. Por fim, o franciscano escafedeu-se e sumiu da cidade. O povo ficou frustrado e revoltado, mas exigiu do dominicano que fosse sozinho ao fogo e provasse a santidade de Savonarola.
Enquanto este arrumava novas desculpas, um enorme temporal abateu-se sobre a cidade.
A massa popular considerou aquilo um castigo divino e a culpa recaiu sobre Savonarola. Pouco a pouco sua força moral foi esvanecendo até que foi condenado pelo Papa e entregue à justiça da cidade. Tropas cercaram o convento exigindo que Savonarola se entregasse. Ele e mais dois frades, fiéis a ele, foram presos, torturados e condenados à morte. O moralista punitivista acabou vítima de seu próprio método. O que fez com tantos, fizeram com ele.
Sérgio Moro está em sua Prova de Fogo, desafiado à conta gotas pelas revelações de Greenwald. Passará pela prova de fogo?
Caso não passe, espera-se que os avanços civilizatórios ocorridos entre os séculos XV e o XXI, que não se aplicaram aos perseguidos, se apliquem ao perseguidor – seja julgado por um juiz natural, isento e transparente com presunção de inocência; com amplo direito à defesa, com paridade de armas entre defensor e acusador e sem jogo combinado entre juiz e acusação; sem prisão arbitrária como tortura psicológica para arrancar confissões forjadas e sem celeridade artificial; não seja preso antes de trânsito em julgado e possa recorrer até última instância; sem condução coercitiva e sem vazamentos de conteúdos cobertos pelo sigilo judicial; que não seja condenado sem provas e possa usufruir de habeas corpus se concedido; possa conceder entrevistas e possa recorrer em liberdade – enfim, que não padeça o Sérgio Fernando do que padeceu o Jerônimo e padeceram e padecem os hoje perseguidos pelo inquisidor de Curitiba. Há outro vivendo uma provação duríssima, jogado por ele, em sua fúria moralista perseguidora, numa masmorra solitária há mais de ano, condenado sem provas. Pelo visto, sem desconhecer a dor e o sofrimento do cárcere, este está se saindo bem melhor e com mais dignidade e altivez que o Savonarola do Brasil do século XXI.
Para este, mais fácil buscar analogias em Ghandi e Mandela.
Cada qual com o espelho que merece.
* Sérgio Antônio Görgen é frei franciscano, autor de “Em Prece com os Evangelhos”
Edição: Marcelo Ferreira