Não é de hoje que a esquerda tem uma simpatia toda especial pelo aumento da participação em todos os processos políticos. Mesmo em regimes de esquerda que podem ser caracterizados como autocráticos, as palavras de ordem eram sempre “participação”, “povo” e “democracia”. Há uma romantização da plebe e do popular. Como se todas as virtudes humanas estivessem encarnadas em estado puro nas “massas”. As massas fazem as melhores escolhas, as massas detém o supremo desejo de justiça e as massas estão sempre com a razão. Daí porque o fascismo foi tão emblemático para a esquerda.
Também, é possível perceber o quão atônita ficou a esquerda brasileira com o fascismo tupiniquim que algumas pessoas querem chamar de “Bolsonarismo”. As oposições estão mesmerizadas e com fraca resposta, exatamente porque “as massas”, aquele coletivo mítico de valores, atitudes e vontades puras, de repente, se mostram violentas, preconceituosas, ignorantes e antidemocráticas. O fascismo rouba uma parte da legitimidade da esquerda. “As massas” agora parecem não mais defender medidas e decisões que melhorem a sua vida. “O povo”, no fascismo, se dispõe a um acordo que tem duas bases: a promessa e o sacrifício.
Primeiro, vamos falar da legitimidade e, depois, das partes do acordo fascista que ocorreu em todos os países que experimentaram este fenômeno. No final, o leitor verá que as coisas se retroalimentam num círculo epistêmico de difícil ruptura.
Qualquer manual sobre democracia mostra que este não é o sistema mais barato. A democracia é cara. Exige uma série de instituições a regularem umas às outras. Ouvi, durante a campanha eleitoral do ano passado, diversas “propostas” para reduzir o número de deputados, senadores ou mesmo vereadores. Gente “iluminada” que fazia conta da economia de se cortar, 20, 30 ou até 70% (!) dos cargos de representação. Num dos debates que participei eu dei uma de louco: defendi a redução de todos os cargos para apenas um. Vamos eleger apenas um senador, um deputado e um vereador. Rapidamente, as mentes mais inteligentes percebem que nunca é bom reduzir espaços de participação e que o custo de deputados e senadores é pequeno quando a democracia funciona.
A democracia não é barata, não é rápida, não é o sistema mais eficaz de governo e, com o fascismo, cai o mito de que as massas sempre fazem as “melhores escolhas”. A democracia vive de um e apenas um bom elemento: o aumento – sempre tendendo ao máximo – da participação política de todos. E se todos estiverem implicados numa decisão, de forma direta, o custo de decisões erradas ou ruins “ensina” como devem ser as decisões futuras. Mas isto leva tempo. O que o Brasil vive é o lambuzo de sua população com um pequeno gostinho de democracia participativa.
Nos governos Lula e Dilma foram implementados diversos sistemas de consulta e participação. Outros inúmeros mecanismos de transparência e empoderamento de instituições. Ao mesmo tempo, milhões de pessoas passavam a ser “cidadãos” documentados, outros milhões passaram a votar e toda esta inclusão veio acompanhada da melhoria das bases salariais e da economia dando a sensação a todos de que “um novo país” se formava. Juntamente com este enorme movimento, cimentavam-se as mesmas oligarquias no poder, notadamente o PMDB, mas também o PSDB em SP. Estes grupos ganhavam cada vez mais dinheiro e poder e o contraste entre as mudanças de participação e o fechamento dos círculos de poder gerou a violência entre 2013 e 2015. A Lava a Jato é fruto deste empoderamento participativo e do choque das velhas oligarquias. O golpe contra Dilma foi a tentativa das elites carcomidas do PMDB e PSDB de se salvarem. Por um minuto, os novos grupos que demandam poder e os antigos que queriam mantê-lo tinham uma agenda em comum: tirar Dilma e o PT de qualquer possibilidade de liderar as massas e governar.
Esta agenda comum se desfez com a ascensão do fascista Jair Bolsonaro. O PSDB perdeu qualquer traço liberal, e a figura externa de João Dória, com a rotunda mentira de “João trabalhador”, se tornou o “grande nome” do partido. O PMDB saiu ainda mais queimado e este espaço político foi tomado pelo neofascista PSL. Até o início do segundo turno das eleições passadas, quase todos os analistas afirmavam que a eleição seria decidida entre PT e PSDB, de novo. A imensa maioria, incluindo os partidos de esquerda, não acreditava na virada fascista de Bolsonaro. E cometeram um imenso erro.
O fascismo vive de um deslocamento cognitivo de interpretação do mundo. O “real”, a empiria ou os dados, deixa de ser importante frente ao mundo “acreditado”. No sul da Itália, por exemplo, mesmo após a morte de Mussolini e a derrota da Itália, com a exposição de seus crimes e barbaridades, as populações de cidades próximas continuavam a defender o líder fascista. A desnazificação, na Alemanha, durou mais de 30 anos e, talvez, sem sucesso. A “realidade” pouco importa frente ao que a “massa” passa a acreditar. No século XXI, a revolução na comunicação e as “redes” somente tornaram a missão de alterar o real, mais fácil e efetiva.
Discussões sobre se a Terra é plana, se vacinas são positivas ou não para a saúde, se as instituições democráticas são importantes ou não, terminam invariavelmente no campo do “real acreditado” e não no empírico. E aí entra a grande “promessa” do fascismo: construir o mundo como “você” quer. Pouco importa se os dados mostram que o PT nunca quebrou o país, mas, ao contrário, foi responsável por um ciclo de crescimento e inclusão que nunca houve em nossa história. Também pouco importa se mais de 90% da pesquisa científica no Brasil é realizada por universidades públicas e, em todos os lugares do mundo, o ensino é SEMPRE financiado pelo poder público. Importa o “real acreditado”. Busca-se não conhecer a realidade, mas argumentos que corroborem as crenças anteriores.
Foi exatamente isto que fizeram Moro e Dallagnol contra Lula. E esta é a essência do fascismo.
No caminho entre o que é e o que eu quero que seja, existe o autoconvencimento feito pelas massas cansadas de política, ou a violência institucional e explícita, direcionada aos que relutam. Seja como for, está em curso a “promessa” do fascismo. Tornar a realidade o que quer que queiramos. Pouco importa se existam diferentes modelos de país mesmo dentro das hostes dos seus apoiadores. Quase nada importa se o modelo de “Brazil” que eles defendem seja, na prática, impossível. O fascismo oferece migalhas de participação política dentro de um ambiente subjetivo em que as “massas” acreditam-se realmente importantes e efetivas. Por isto pautas inócuas como o fim do horário de verão, o ataque à tomada de três pinos ou as pesquisas sobre Nióbio são importantes. Cada um interpreta como se o “seu” país estivesse em formação.
Enquanto as “massas” se deliciam com um governo de fachada que apenas parece responder a elas, o capitalismo segue amealhando riqueza e poder, esperando o momento de se confrontar com o autoritarismo. Daí a necessidade de uma liderança teatral, ignorante, boçal e sem nenhuma capacidade de compreender para onde está indo. De fato, a experiência histórica mostra que o capital precisa de uma série de liberdades para crescer em velocidade máxima, mas também mostra que ele pode aceitar restrições em seu crescimento se isto significar o enfraquecimento do mundo do trabalho, seu histórico antagonista.
Neste jogo de “promessa” por legitimidade política, se oferece às massas uma parcela do poder de violência do Estado: a posse de armas. No mesmo jogo, novos líderes surgem, como oriundos do “povo”, a defender o discurso e a nova realidade “acreditada”, dando a impressão de que o país “está indo para o lugar certo”. Contudo, este esforço de irrealidade, baseado na irracionalidade e contando com um deslocamento cognitivo do real empírico para o subjetivismo ideológico como definidor do processo decisório, tem seu fim certo. Há uma dessincronia cada vez mais evidente entre o real empiricamente testável o mundo “acreditado” do fascista. Por enquanto, Bolsonaro ataca o INPE, o IBGE, o BNDES, o IPEA, o The Intercept e tudo o mais que mostre a realidade que ele não quer ver. Não poderá, entretanto, manter esta luta por muito mais tempo.
Aqui entra o “sacrifício” que o fascismo pede de seus apoiadores. Quando o real é por demais evidente (e pesado) e a realidade “acreditada” não consegue mais o esconder, surge a ideia do preço que se deve pagar. Os trabalhadores estão perdendo. O gás e a gasolina aumentando. O desemprego em níveis estratosféricos. Saúde e educação públicas sendo desmontadas. E tudo isto, dizem eles aos seus apoiadores, é o “sacrifício” que deve ser feito por um “Brazil melhor”. Era o mesmo discurso de Hitler e Mussolini para que jovens se jogassem nos campos de batalhas contra os Aliados.
Leva um tempo até as massas se darem conta de que o “Brazil melhor” nunca chega para elas. De que o emprego não vai voltar, apesar de todo o “sacrifício”. Leva um tempo até que o real se faça sentir de forma inconteste por sobre o véu da dominação acreditada do fascismo. E dentro deste tempo, a ferramenta de sobrevivência do regime é aumentar a violência. Aumentando a violência, o sistema ganha tempo no poder, mas perde legitimidade. A função da esquerda é, portanto, diminuir este tempo. E só se consegue isto com uma oposição obstinada pelos meios sociais e políticos, juntamente com a ampliação das contradições entre o capital e o autoritarismo. Glenn Greenwald e o The Intercept nos diminuíram este tempo, talvez, em quatro ou cinco anos. É hora das centrais sindicais e dos partidos políticos entrarem no jogo.
Do ponto em que estamos é inevitável o surgimento da violência. A escolha é se vamos lutar no campo, no tempo e nas regras do inimigo ou se vamos tomar para nós um pouco de protagonismo. A escolha é entre o sofrimento prolongado de muitos, até o exaurimento dos limites entre o real empírico e o real acreditado, ou o sofrimento pontual, curto e brutal, de alguns para a ruptura dos processos de dominação simbólica. As instituições estão mortas. Fazem parte do acordo pelo prolongamento do fascismo no poder. O STF aposta que pode se esgarçar e não se romper, e seus membros preferem manter os dedos COM os anéis. Dali não vira mudança alguma.
Não é errado comparar o Brasil a um indivíduo em transe, distante de suas faculdades racionais e sensoriais. O erro, é acreditar que temos tempo para esperar que ele recobre a consciência “por si mesmo”. E que não haverá sequelas, depois disto.
* Fernando Horta é colunista do GGN
Edição: GGN