Nessa madrugada de 14 de julho de 2019, o site The Intercept Brasil, em conjunto com o jornal Folha de São Paulo, desnudaram mais um aspecto do grande processo conspiratório em curso no Brasil, que tem na Operação Lava Jato sua ponta-de-lança.
As reportagens, até aqui publicadas, já haviam exposto a ruptura do sistema jurídico brasileiro, a partir dos diálogos onde acusador e julgador combinam a estratégia de condenação. Essa combinação, foi revelado logo a seguir, envolveu também o julgador do recurso, um desembargador do TRF4, e ministros da corte constitucional. Aqui, essa aliança de jornalismo investigativo, já havia nos permitido perceber a agressão ao princípio do julgamento justo, da presunção de isenção dos julgadores. Os julgamentos das ações da Lava Jato abandonaram os princípios do Estado de direito moderno, fundados com a revolução Francesa no século XVIII para retroceder à Idade Média, onde os julgamentos já estavam definidos antes mesmo do “crime” acontecer, bastava saber a procedência de classe do envolvido, se aristocrata ou servo.
Na sequência, as reportagens nos demonstraram que não só os julgamentos eram fraudulentos como a própria investigação também o era. O conluio entre julgador, acusador e investigador, para manobrar as sentenças, apelações e prazos até que os investigados aceitassem registrar a delação mais conveniente para a tese da acusação, fere de morte o Estado democrático de direito, mesmo que este seja apenas norma jurídica. Os envolvidos no conluio, na combinação ilegal, reconheciam a insuficiência de provas e trataram de fabricá-las com o instrumento das delações premiadas, através de uma manipulação ilegal desse expediente, premia-se com impressionante abrandamento de pena os que contribuíram para forjar as provas requeridas pela Força-Tarefa da Lava Jato e pune-se, pesadamente, os que não quiserem ou não puderem contribuir com essa intenção.
Mais uma vez, a operação Lava Jato retrocedeu do Estado moderno para o Estado medieval, agora sob inspiração dos julgamentos da inquisição religiosa onde o suspeito era torturado até o desenlace final, ou morria na tortura por não ter confessado o crime que a ele estava destinado ou morria por ter confessado o crime que, já era esperado, tinha cometido.
A operação Lava Jato foi a ponta-de-lança de uma conspiração político-eleitoral. Uma série de reportagens demonstrou a racionalidade política da operação, primeiro nos vazamentos intencionais e seletivos sobre as investigações, o que contribuiu para o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, e após inviabilizando a candidatura do Lula, através da aceleração do julgamento no TRF4, afim de materializar sua condenação e o cumprimento de pena, como também impedindo que desse entrevistas em favor do candidato de seu partido.
Agora, a reportagem mais atual descortina outra faceta complementar dessa ‘biografia” que vai sendo montada sobre esta que, tudo leva a crer, seja a maior conspiração, antidemocrática e anticonstitucional, da história do Brasil. Os diálogos entre acusadores da operação Lava Jato demonstram uma ação racional para amealhar dinheiro a partir da fama que eles obtiveram, nas suas palavras “nosso networking e visibilidade”. Trata-se de, como diz o TIB, “um plano de negócios para lucrar com eventos e palestras na esteira da fama e dos contratos conseguidos durante a operação”. Combinações sobre a criação de uma empresa com diretoras laranjas para agenciar cachês, utilização de servidores públicos em horário e meios de serviço para secretaria-los nesse empreendimento privado, convites a outros burocratas para fazerem o mesmo no claro intuito de legitimar essa conduta antiética e imoral, inundam as trocas de mensagem publicadas.
O estarrecedor é que, apesar dessa conduta antiética já visível desde o início da operação, os burocratas da Lava Jato foram protegidos ora com a omissão, ora com a legitimação por parte da próprio MPF. O Conselho do Ministério Público, que deveria zelar pelos princípios da Constituição Federal, chancelou esse desvio de conduta e muitos dos demais procuradores silenciaram, talvez por que tenham aderido a esse mainstream. Mas pode ser que nem todos tenham aderido, então porque silenciaram?
Na resposta à essa pergunta, talvez, esteja o mais fundamental das razões e motivações dos burocratas da Lava Jato, porque diz das razões desse desvio de conduta e dessas possíveis ilicitudes que a operação tenha cometido. Houve silêncio e omissão por que a operação Lava Jato foi blindada por uma ampla coalização político-empresarial que criou uma “atmosfera”, onde a simples dúvida sobre sua legitimidade era criminalizada a partir de uma operação de propaganda muito eficiente, por que disfarçada de jornalismo, levada a cabo pelo oligopólio das empresas privadas de comunicação.
Esse apoio das grandes redes de comunicação não seu deu por adesão ética ao combate à corrupção, a corrupção não foi o centro da operação e por isso ela continua campeando nas relações empresariais brasileiras. Tampouco foi por respeitar ao devido processo legal, pois isso não levaria à condenação da cúpula do Lulismo e, em especial, do Presidente Lula. O apoio das grandes redes privadas de comunicação à operação Lava-Jato era essencial para que essa aliança empresarial pudesse ter as condições políticas suficientes para consolidar a maioria no Congresso Nacional e remover do governo uma coalizão de centro-esquerda que pudesse ser um empecilho, ainda que parcial, para a nova fase, mais agressiva, de exploração do trabalho e do país. O grande capital em crise, que nunca perdeu o controle sobre o Estado, decidiu ter o controle absoluto sobre o governo especificamente, para o que que a antiga coalização de forças não contribuía, e a Lava Jato fez o serviço.
O conluio entre acusadores e julgadores, com a sustentação do oligopólio das empesas de comunicação, condenou os brasileiros à reforma trabalhista e à reforma da previdência e o Brasil à perda de controle de seus ativos estratégicos, como o petróleo. Jogou o país em uma aventura retrógrada e antidemocrática.
As pontas se unem quando os burocratas decidem aproveitar o networking e a visibilidade. Ao fim e ao cabo a ideologia se funde com a conta bancária. As gratificações pelos serviços jurídicos não republicanos prestados pelos componentes da Lava Jato, expostos pela reportagem, é o mercado quem dá. O mercado aparece aqui com a alcunha de “networking”, e a transação se completa. O mercado de palestras os contrata não só para falar do “combate à corrupção” mas também para falar do que “as faculdades não ensinam”: empreendedorismo, a ideologia da prosperidade, os valores do sucesso individual e a sobre a utopia capitalista do enriquecimento e da meritocracia. De servidores públicos de carreira jurídica de Estado se transformaram em ‘coaching” do MBL. O problema é que, nas mensagens expostas, não aparece nenhuma disposição de alertar aos jovens que a grande maioria, se não a totalidade, não realizará essa utopia em função da dinâmica monopolista do capitalismo e pela origem de classe.
Não há como não relacionar essa disposição de complementação financeira com a, quase, consecução da fundação privada com o dinheiro público recolhido nos EUA em função dos acordos judiciais de empresas brasileiras naquele país. Seria o “crime perfeito”, prestação de serviços ao capitalismo com gratificações sem controle público e questionamentos quanto a sua legitimidade. Mas crimes perfeitos não existem e a operação Fundação Lava Jato não deu certo.
As investigações jornalísticas lideradas pelo TIB descortinaram a trama conspiratória internacional que é a Lava Jato, demonstrada pelo “vamos articular com os americanos”. Mas toda grande trama, incluindo-se aqui as conspirações políticas, tem o sentido histórico moldado pelos interesses econômicos das classes dominante mas são feitas por partidos e intelectuais orgânicos. O papel de partido foi assumido pelo oligopólio de comunicação e o de intelectuais orgânicos pela alta burocracia do sistema jurídico.
Obviamente, não esperaria que os paradigmas desses componentes da alta burocracia estatal fossem Vladimir Lênin, Ernesto Guevara, Rosa Luxemburgo, Anita Garibaldi ou Simon Bolívar, isto seria uma opção ideológica e ética além das expectativas. Mas que ao menos fossem Maximilien de Robespierre, Georges Jacques Danton, Winston Churchill, Frankilin Roosevelt, Teotônio Vilela ou Dom Hélder Câmara. O que resta, de maneira estarrecedora, é que a ingênua utopia da Constituição pós autoritária de 1988 deu guarida a uma burocracia que tem na parede, como autorretrato, ao invés daqueles, Fulgêncio Batista, Antonio Salazar, Garrastazu Médici e Nelson Rockefeller.
Não é mais possível que a maioria da sociedade brasileira sustente essa farsa que serviu para lhe tirar direitos básicos, o que ainda não está concluído haja visto a “arminha” apontada para a educação e a saúde públicas.
A Lava Jato está desmascarada. Seus efeitos jurídicos devem ser revistos sob a luz da Constituição Federal e seus efeitos políticos e econômicos devem ser, igualmente, barrados sob pena da destruição do país e da ultra exploração física da classe trabalhadora. Para um sistema de justiça não basta parecer ser justo e honesto, é preciso que ele efetivamente o seja, assim como a um regime político não basta parecer ser democrático e buscar a igualdade, é preciso que ele o seja e o faça.
* Jorge Branco é sociólogo e mestre em Ciência Política
Edição: Marcelo Ferreira