O que é certo é que a vertigem da democracia segue
Assisti recententemente ao documentário Democracia em Vertigem, de Petra Costa. Para mim, um belo documentário. Bom texto, imagens bonitas e outras fruto de um baita acesso que teve a documentarista. Gostei da costura com a história da família, embora me pareça que às vezes não funciona tão bem como poderia. Mas crítica de cinema não é o meu forte e nem o meu foco. Vamos à questão política.
Logo que o documentário foi lançado, vi aqui uma enorme onda positiva sobre ele. Depois essa onda deu uma esfriada e teve início uma onda - menor, é verdade - bem negativa. Minha rede de perfis que acompanho nas redes sociais digitais é bem diversa dentro da esquerda. E, pelo que vi, a primeira onda foi de petistas e simpatizantes (foram os primeiros a ver, mais interessados no documentário) e a segunda foi de setores da esquerda mais afastados do PT (viram depois e não gostaram tanto).
Daqui do meu olhar, que é o que posso oferecer, o filme é bom politicamente. É claro que não vai esgotar em duas horas todas as abordagens, todos os temas, é claro que não vai, contando tantos anos em tão poucos minutos, aprofundar cada tema. E é claro que ali está o olhar da documentarista, não de cada um dos espectadores. Por isso é preciso ter paciência e abertura às leituras diferentes que ela faz do que todos vivemos da eleição de Lula até aqui. Mas considero um exagero sectário falar em "falsificação da realidade", como vi em algumas postagens. As leituras da realidade feitas por Petra Costa são absolutamente razoáveis.
2013
Eu discordo de algumas das leituras de Petra, penso que algumas questões que passam rápido mereceriam mais atenção do que outras que se estendem um pouco. Mas não há nenhum problema aí. O problema que há, para mim, é no brevíssimo trecho que trata dos protestos de 2013. Não parece pra mim, que vivi aquele processo e que vejo o filme sem me obrigar a gostar ou desgostar, que Petra defenda de fato o que parece defender. O filme não deixa claro para quem não viveu as lutas de 2013 a leitura que a documentarista faz daquele turbilhão. Um estrangeiro que assista ao filme, por exemplo (e me parece que esse é um dos objetivos, denunciar ao mundo os ataques à democracia brasileira), não vai entender naqueles rápidos flashes o que ela está querendo dizer. É, de fato, um tema muito complexo, mas cabe trazer aqui alguns apontamentos:
Petra fala em um “abalo sísmico” vivido pelo país em 2013, e assim o descreve: “Na onda da Primavera Árabe, um pequeno protesto contra o aumento da tarifa de ônibus, acirrado pela repressão policial e com a ajuda da mídia e das redes sociais, logo se transformaria em uma das maiores manifestações da história do país. À medida em que as ruas acordavam depois de 20 anos, com uma série de reivindicações difusas, alguma coisa no nosso tecido social começa a mudar, dando lugar a uma fissura profunda que nos dividiria. Depois de uma década no poder, as bandeiras vermelhas do PT já não pareciam espelhar os desejos da população. Elas começaram a se tornar o alvo. Deste momento em diante, nada mais seria igual”.
Tudo bem que não há espaço para grandes desenvolvimentos, mas reduzir toda a complexa dinâmica de fluxos e refluxos que gerou Junho a “um pequeno protesto acirrado pela repressão policial e com a ajuda da mídia e das redes sociais” é um equívoco importante. Trata-se, na verdade, de um longo processo iniciado anos antes com lutas em defesa do transporte público em diversas capitais, que ganhou força em Porto Alegre no início de 2013 e, então, espalhou-se pelo Brasil, com peso maior para Rio de Janeiro e São Paulo, onde, de fato, o “abalo sísmico” se consolidou.
Outro problema desse trecho é a afirmação de que foi ali que o tecido social passou a conter “uma fissura profunda que nos dividiria”. Essa afirmação nega a divisão de classes que é o próprio tecido social do capitalismo, ainda mais acentuado na periferia do sistema, caso do Brasil. Essa fissura profunda sempre existiu, o que o processo político-social gerado em 2013 fez foi quebrar silêncios e fazer ver na superfície reflexos dessa divisão – o que é uma das características essenciais das manifestações de rua.
Petra refere, então, a queda de popularidade de Dilma em meio à explosão dos protestos: “Pouco antes desses protestos, a popularidade de Dilma ficou tão alta que ela arriscou agir na contramão da conciliação lulista. Ela tirou cargos importantes do PMDB e forçou os bancos a reduzir a taxa de juros. Mas a economia perde força e os protestos desestabilizam o principal pilar do governo: o apoio popular”.
De fato foi impressionante a queda de popularidade de Dilma logo que os protestos se nacionalizaram. Mas é igualmente verdade que a popularidade da presidenta, pouco depois, voltou a subir (embora não tenha mais chegado ao patamar anterior a junho de 2013), permitindo, inclusive, sua reeleição. É no início de 2015, já em meio aos protestos da direita e ao “ajuste fiscal” que feria a classe trabalhadora, que a popularidade de Dilma vai chegar aos seus índices mais baixos, sequer alcançando os dois dígitos, o que acaba de esfacelar a base social do governo e facilita o caminho para o golpe que já vinha em marcha.
O trecho do documentário que fala sobre as manifestações de 2013 é encerrado com imagens que mostram, de um lado, os manifestantes que negavam os partidos políticos e tentavam expulsá-los dos atos e, de outro, manifestantes que, no vídeo, pedem por democracia. Há um corte, então, para a escuridão e, na sequência, para um manifestante "verde-amarelo", defensor do golpe. Embora seja inegável que há um fio condutor entre 2013 e 2015, essa perspectiva ignora mais uma vez o fato de que as mobilizações de 2013 não se restringem a junho, sendo fruto de um longo e complexo processo, que teve as forças de esquerda e populares como impulsionadoras e que, como se sabe, tornou-se depois, aí sim, uma miríade de forças políticas e sociais em disputa - disputa que o campo popular acabou perdendo com os resultados do golpe de 2015.
Ciclos
O que é certo é que a vertigem da democracia segue, e a cada dia temos mais provas (não apenas convicção) de que o golpe que derrubou Dilma e pariu Bolsonaro é um desastre para o país. Por outro lado, o documentário pode ser visto como uma afirmação dos ciclos - e ciclos que, do ponto de vista da história, podem ser curtos. É hora de começar a superar a vertigem. E essa superação não permite espaço ao medo das ruas: é preciso reocupá-las e, com elas, voltar a disputar o futuro e abrir um novo ciclo - de lutas e de democratização do país.
Edição: Marcelo Ferreira