Quem fica um dia na floresta quer escrever uma enciclopédia.
Quem fica cinco anos quer ficar em silêncio para contemplar.
(Pedro Casaldáliga)
Em artigo publicado em abril desse ano, na revista Carta Capital, a jornalista Ana Helena Tavares escreveu: "No Araguaia, Pedro Casaldáliga evangeliza contra o colonialismo e desperta ira da elite local ao denunciar seus crimes. Num mundo dividido por muros e ódio, seu exemplo é inspirador: o paraíso também pode ser construído na terra".
Em um recôndito do estado do Mato Grosso, localiza-se a cidade de São Félix do Araguaia, com uma população de 10.625 habitantes. Lá, vive Dom Pedro Casaldáliga, de 91 anos.
Em visita a Porto Alegre para lançar a "causografia", termo que o próprio Pedro prefere ao referir-se ao livro "Pedro Casaldaliga, um Bispo Contra todas as Cercas", Ana conversou com a Rede Soberania e o Brasil de Fato. Um livro que vai além da simples biografia, que conta sobre a vida e o obra desse padre e poeta pouco conhecido no país, mas também de suas causas, que se confundem com sua vida. Relata a luta contra as cercas em prol das causas humanitárias daquele que enfrentou a ditadura, que é um dos maiores defensores e propulsores da Teologia da Libertação no Brasil e que vive entre aqueles que defende, os pobres, e pratica o que diz.
Confira a entrevista completa com a autora:
Rede Soberania: O que motivou você a escrever o livro?
Ele começou muito por acaso, através da minha história com o Pedro. Eu tinha um trabalho jornalístico sobre a ditadura militar, e quando eu estava procurando alguém da igreja católica, ele me foi indicado. Fui entrevistá-lo para esse trabalho, devido a sua história de enfrentamento da ditadura, muito forte, muito bonita. Isso foi em setembro de 2012, e comecei a me encantar pela sua história. Pedro é o tipo de pessoa que nasce de mil em mil anos.
Eu já estava inclinada a começar uma trajetória de biógrafa, uma mistura de jornalismo com literatura, trabalhar nessa fronteira, do jornalismo literário, e eu vi no Pedro um personagem fantástico, vi a oportunidade de realmente mergulhar na história de alguém que não é conhecido no Brasil como deveria ser. Na Espanha ele é uma pessoa muito importante, na Catalunha principalmente. E aqui no país ele está desde 1968. Se você for nas ruas do Rio de janeiro, nas capitais a maioria não sabe quem é Pedro Casaldáliga. Então eu queria mostrar que a sua história é profundamente brasileira, as causas que ele abraçou são profundamente brasileiras, e infelizmente são muito atuais.
Então eu mergulhei nisso e vi a oportunidade, uma razão social para o meu trabalho, inclusive o código de ética do jornalista destaca a nossa função social, e eu vi no Pedro Casaldáliga uma oportunidade para eu dar uma função social ao meu trabalho.
Rede Soberania: E uma coisa que é muito forte no Pedro, é essa opção pelos pobres, essa opção pela luta social. Como você percebe essa luta dele personificada, aqui na pessoa do Dom Pedro, mas especialmente nos testemunhos que as pessoas foram construindo ao longo da sua trajetória?
Essa característica da inserção no mundo dos pobres, ser pobre junto aos pobres, ele faria em qualquer lugar, como fez em São Félix do Araguaia. Se vocês forem hoje a São Félix do Araguaia, ele está com 91 anos, ele nunca saiu de lá desde que chegou ao Brasil, e ele não aceita ter ar-condicionado em casa. São Félix, ao contrário de Porto Alegre, é uma cidade quentíssima. Então ele fica lá, com um grau de temperatura altíssimo, somente com um “ventiladorzinho”. Ele diz que se os pobres não podem ter ar-condicionado ele também não pode. E essa mesma justificativa levou ele, por muitos anos, não ter sequer geladeira, foi um custo para convencê-lo a ter uma, só foi ter na década de 1990.
Enfim, é uma opção radical no sentido de ir à raiz dos problemas e de viver aquilo que ele sempre pregou, a coerência do discurso com a prática. Ao contrário da maioria das coisas que a gente vê hoje, em política inclusive, que falam coisas que não praticam, Pedro praticou o que defendia.
Rede Soberania: Dom Pedro Casaldáliga tem períodos, digamos assim, de aproximação com a igreja, e por outro lado, muitas vezes de embate com a igreja católica mais tradicional porque o vínculo dele é muito forte com a teologia da libertação.
Ele teve momentos realmente de aproximação profunda, quando, por exemplo, o Papa Paulo VI ofereceu proteção direta a ele, estava na época de grande perseguição contra ele na ditadura militar. Dom Paulo Evaristo Arns esteve em Roma e o Papa Paulo VI disse para Dom Paulo que quem mexer no bispo do Araguaia estará mexendo em mim. Isso foi dito realmente pelo Papa para Dom Paulo para que fosse enviada essa mensagem para que ninguém tocasse em Dom Pedro. Isso foi uma proteção tremenda para ele. Muita gente deixou de matar o Dom Pedro até por questões religiosas realmente, um deles de quem consegui o documento, uma pessoa que havia sido encomendada para matar o Pedro, deixou de matá-lo, foi na delegacia e falou para o delegado: não vou matar porque minha mãe disse que não posso matar padre, e escreveu isso lá.
Agora, por outro lado, houve também perseguição. O arcebispo de Diamantina, Dom Geraldo de Proença Sigaud, já falecido, na década de 1970, abriu processo contra Dom Pedro e Dom Tomás Balduíno, e alegava que era infiltração comunista dentro da igreja, e essa foi uma acusação que ele sofreu ao longo de toda a vida dele, ser comunista é ser ruim. E a gente está vendo isso voltando nos dias de hoje, infelizmente.
Rede Soberania: No livro você faz uma divisão, um pouco mais da parte da história, e depois as cercas. Trabalhe um pouco para nós, como foi e porque dessa divisão, e porque as várias cercas que você faz questão de mencionar.
Isso foi um pedido pessoal do Pedro Casaldáliga quando eu estive em uma das ocasiões lá para conversar com ele e dizer que ia fazer esse livro, em 2016. E a primeira coisa que ele falou: você não vai fazer uma biografia, você vai fazer uma causografia. A partir do momento que ele me diz você vai fazer uma causografia, porque as causas dele se misturam com a vida, então eu tinha que arrumar um jeito de contar a história dele, mas contá-la através das causas.
Eu resolvi falar da parte que ele viveu na Espanha, falar da parte que ele foi à África, que é uma parte pouco conhecida, mas que teve influência na história dele, e depois, a partir do momento que ele chega no Brasil eu resolvi contar essa história dele no país através das cercas. As cercas seriam sinônimo de causa, cada cerca contra a qual ele lutou foi uma causa que ele abraçou. Quando eu digo, por exemplo, as cercas da ignorância, ele lutou contra as cercas da ignorância porque ele abraçou a causa da educação. Na verdade a causa seria o avesso da cerca.
Outro exemplo, se ele lutou contra as cercas da senzala é porque ele abraçou a causa da libertação contra a escravidão; se ele lutou contra as cercas do esquecimento, é porque ele fez questão de abraçar a causa da memória... O Brasil é um país sem memória até por isso eu quis fazer esse livro, para manter a memória dele viva, para resgatar a memória dele.
Pedro é uma pessoa que se preocupa muito com isso, ele fez um arquivo em São Félix do Araguaia. Criou um arquivo público lá que me ajudou tremendamente, tem fotos dele, poemas, Pedro é um grande poeta, inúmeros documentos que estavam lá. Cada uma dessas cercas representam essas causas, são 11 no total, não vou falar todas aqui porque também quero que vocês leiam o livro (risos).
Brasil de Fato: E justamente sobre isso, a questão da memória, porque a história do Dom Pedro se confunde com a própria história do país, a organização dos movimentos sociais, como o MST, por exemplo. Como tu pretende levar esse livro para o conhecimento da população, em geral. Tu estás lançando ele aqui em Porto Alegre, vai ter em outros estados, mas tu estás pensando em alguma estratégia, trabalhar o livro em comunidades?
Eu ainda não tive tempo de pensar em estratégia porque, apesar de Pedro Casaldáliga ser um ilustre desconhecido, ele tem um grupo onde é bastante conhecido. A partir do momento que esse livro saiu da gráfica em 15 de abril desse ano, as coisas foram surgindo de uma tal maneira na minha vida que eu não tive tempo de fazer a estratégia.
O livro foi lançado em 8 de maio, no Rio de Janeiro. Já tinha sido em São Félix do Araguaia, em 21 de abril, domingo de Páscoa. A primeira coisa que quis fazer foi levar o livro a Pedro. Após o lançamento no Rio começaram a surgir convites para divulgação em outros estados, como São Paulo, Belo Horizonte (onde tem muita gente ligada ao Pedro), em Campinas (onde tem muitos padres ligados a teologia da libertação), em Cuiabá.
Rede Soberania: Uma coisa que é muito forte, até a título de testemunho, é que para nós, ligados aos movimentos sociais, Dom Pedro Casaldáliga é uma referência do ponto de vista de princípio, tanto teológico como testemunhal, que acho que foi isso que você quis trazer com o livro. E é muito importante termos alguém que faz um livro de biografia, com causa, enquanto a pessoa biografada está viva, isso é salutar.
Essa foi uma preocupação minha, levar o livro ao Pedro, embora agora ele esteja muito mal de saúde, mas eu fiz questão de correr o máximo possível para que pudesse entregar o livro para ele. Quando se fala em Pedro Casaldáliga, tem algumas pessoas que até ouviram falar o nome, e soa como uma coisa mística, Dom Pedro Casaldáliga, esse cara é de carne e osso, vai lá em São Félix do Araguaia que ele está lá.
Acompanhe a transmissão do lançamento pela Rede Soberania:
Edição: Marcelo Ferreira