A situação de isolamento forçado e as ameaças sofridas pelos Mbya Guarani que retomaram uma área no extremo-sul de Porto Alegre (RS), conhecida como Ponta do Arado, bem como a lentidão nos processos judiciais do caso, foram tratadas em uma audiência pública da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Realizada nessa terça-feira (19), a audiência proposta pelo deputado Jeferson Fernandes (PT) reuniu indígenas, antropólogos, ambientalistas, deputados e autoridades das três esferas, e teve como principal encaminhamento a criação de um grupo de trabalho para centralizar as demandas referentes à comunidade.
Os indígenas que vivem no local há um ano estão impedidos de acessar a área por área de terra, dispondo apenas de um barco para seus deslocamentos. Mesmo o acesso à água potável é dificultado devido à cerca que restringe o grupo a uma pequena faixa na orla do rio Guaíba, colocada pela empresa que comprou a área com a pretensão de instalar um condomínio de luxo. Além disso, por diversas vezes, os indígenas já foram ameaçados de morte por seguranças que prestavam serviço para o empreendimento Arado Velho.
Até as autoridades estão sem acesso à área, o que impede a chegada de mantimentos e assistência médica. Conforme relato do diretor de Direitos Humanos da Secretaria de Desenvolvimento Social e Esporte de Porto Alegre, Dari Pereira, a restrição impediu o poder municipal de fornecer serviços essenciais aos indígenas. O relato causou indignação, manifestada na fala de diversos componentes de mesa do debate, que exigiram solução urgente à situação.
“Nesse momento importante, as lideranças da comunidade não estão presentes porque a empresa impede que eles se desloquem por terra”, criticou o procurador do Estado Silvio Jardim, que compõe o Conselho Estadual dos Povos indígenas. Devido à cheia do rio Guaíba, os indígenas não puderam deixar a retomada para comparecer à audiência. “Eles vetam literalmente, não dando sequer uma passagem para chegar por terra, então o deslocamento tem que ser feito pelo rio, num barquinho que conseguiram comprar com a ajuda de apoiadores. Essa dificuldade é mais um dos reflexos negativos em relação àquela comunidade”.
Em fevereiro, depois de uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, atendendo pedido do Ministério Público Federal, se determinou que a demanda jurídica envolvendo indígenas e o empreendimento deve ser julgada e solucionada pela Justiça Federal. O processo de identificação e demarcação está sem previsão de início, conforme o coordenador da Funai, Frederico Campos. Segundo ele, as regularizações fundiárias estão paradas devido às mudanças na estrutura da Funai promovidas pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL), que insiste em contrariar o Congresso Federal, deslocando o órgão do Ministério da Justiça para a pasta da Agricultura.
Retomadas do modo de vida tradicional
As retomadas buscam dignidade e preservação do modo de vida tradicional, em harmonia com o meio ambiente, explicou o cacique José Cirilo Morinoco, lembrando das retomadas nos municípios de Maquiné e Terra de Areia. “Nós queremos respeito, Nhanderu vai fortalecer nossa luta nessa retomada. Se a gente esperar de autoridade, nunca vai chegar. Nós temos que chegar, fazer retomada e aí que a gente vai conseguir. Nós precisamos buscar um espaço sagrado com água, com mata. Nós não precisamos confronto, precisamos da autoridade um olhar diferente para o povo guarani”, afirmou.
Nas últimas décadas, os estudos de etnoarqueologia têm comprovado a presença ancestral do povo na cidade de Porto Alegre, fato presente na tradição oral dos guaranis que a justiça tem dificuldade em valorizar, disse o antropólogo, pesquisador e professor da UFRGS José Catafesto de Souza. “A reforma da Praça da Alfândega encontrou cerâmica guarani, tubos de fibras óticas encontraram cerâmica guarani no Gasômetro. Em Guarujá, Ipanema, Itapuã, Obirici, referência em vários locais de presença Guarani. No Lami, nunca deixou de existir uma aldeia Guarani, que foi destituída na década de 90 para a criação do Parque Municipal José Lutzenberger. Outro exemplo absurdo é o Parque Estadual de Itapuã, onde aldeias foram retiradas”, conta, lembrando que tais fatos estão em processo de tramitação dentro da Funai.
Para o professor, a “contribuição que os indígenas estão deixando para nós é exatamente essa ideia de que a terra não tem fronteiras, que a terra é de uso público, com fim social da propriedade. Da mesma maneira, estamos reconhecendo aqui em Porto Alegre como um novo ponto onde as populações originárias são as mais aptas e mais eficientes na proteção do planeta hoje em dia”.
“Nosso modo de vida é diferente”, explicou o cacique Leonardo sobre a compreensão que seu povo tem da terra. “A gente está discutindo aqui, mas já existem leis que garantem esse modo de vida, o direito que não só os guaranis, mas todos os povos têm. A própria constituição brasileira garante a ocupação tradicional. Para muita gente e autoridades, é só onde tem aldeia, mas na visão guarani, não é só ocupação da aldeia, é toda área onde tem rio, onde tem mata. Tem que respeitar os direitos do cidadão indígena, está escrito. Nunca saiu do papel e até hoje os guaranis estão buscando esse respeito e dignidade”.
O cacique Leonardo encerrou sua fala com um apelo que resume o sentimento da comunidade Mbya Guarani: “Queria pedir que as autoridades competentes que possam resolver essa situação da Ponta do Arado, que façam o mais rápido possível”.
Grupo de trabalho busca agilizar processo
O grupo de trabalho composto pela Defensoria Pública da União, Procuradoria-Geral da República, Funai, Conselho Estadual dos Povos Indígenas, Conselho Estadual de Direitos Humanos, Comissão de Cidadania e Direitos Humanos e outras entidades vai centralizar as tarefas como a subsistência do grupo indígena em coordenação com os órgãos públicos. Há uma semana, conforme relato, foi encaminhada uma ação para assegurar o acesso na Ponta do Arado.
Também foi definida uma visita da Comissão à retomada, para verificar de perto a situação dos indígenas. As ações judiciais em curso serão acompanhadas pelas instituições competentes, que demonstraram disposição em atuar pelas demandas dos Mbya Guarani, em sintonia também com outras regiões do Estado em que grupos indígenas passam por situação semelhante.
Edição: Marcelo Ferreira