Uma superprodução racionalizada e organizada numa linha de montagem é o cenário que abre o longa-metragem Tempos Modernos, de 1936, uma crítica de Charles Chaplin ao fordismo, ao sistema capitalista. Do Século XX, o “século” do automóvel, da produção individualizada, do consumo destrutivo, da fetichização do operário e da operária no mundo da produção, aos tempos atuais do mundo do trabalho, que se configura como “privilégio da servidão” por meio de precarizações, terceirizações, desregulamentações, assédio e contratos intermitentes, foram temas abordados pelo sociólogo e professor Ricardo Antunes, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em conferência realizada nesta segunda-feira (17), no Salão Nobre da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre (RS).
Ao abrir sua fala, o professor traçou um paralelo entre a Revolução Industrial e as realidades atuais. Se a Revolução Industrial se configurou como transformação capitalista da indústria, dos anos 1960 até os dias atuais a realidade do mundo do trabalho é marcada pela transformação estrutural profunda no universo de serviços. “Em 73, chegamos a um ponto culminante de um período do capitalismo que foi marcado por ciclos expansão - crise – expansão. Chegamos a um ponto alto e, a partir dai, [veio] uma tendência declinante profundamente destrutiva, e é dela que estamos nos entendendo ou desentendendo”, aponta.
De acordo com Antunes, inicia-se então, a era da devastação social do trabalho e se encera a era das conciliações, “o que significa demolir tudo que no século XX foi construído em termos de direito do trabalho”. Ao trazer esse contexto para a realidade brasileira, o professor cita, como exemplo, o que aconteceu após o impeachment da presidenta Dilma. “Vimos o Temer fazer em dois anos o que vem se tentado desde o Collor, a terceirização total, ou quase total. A terceirização no setor público que está praticamente liberada, só faltou ao Temer a reforma da Previdência. O resultado é que nós temos uma corrosão crescente do sistema de proteção do trabalho”.
Precariado legal
“O flagelo do desemprego é tão grande que você pega qualquer coisa e depois vai reclamar”, aponta Antunes. Segundo ele, em um cenário de hegemonia financeira e impulsão de mecanismo informacional-digital que não para de se expandir, há um número incalculável de trabalhadores e trabalhadoras que se encontra em situações cada vez mais instáveis e precárias, cuja resultante não é outra senão o aumento do subemprego e do desemprego.
“Temos no Brasil hoje mais de 14 milhões de desempregados, se incluirmos o desemprego por desalento chegamos a 20 milhões, se incluirmos subempregos e subutilizações, os chamados bicos, 30 milhões quando nossa população economicamente ativa é um pouco mais de 100 milhões de pessoas, dados oficiais, ou seja, os dados reais são superiores a isso”, aponta.
Na nova configuração do mundo do trabalho, o setor de serviços antes desprezado pelo capitalismo passa a ser, no fim do século XX e início do século XXI , um setor espetacularmente disponível para sua transformação, altamente gerador de lucro, de valor e mais valia, aponta o sociólogo. “Isso alterou profundamente a saúde, a educação, a previdência, a telefonia, o transporte público, o cárcere. Tudo no setor público que possa ser objeto de lucro ou de geração de valor passou a ser objeto de cobiça dos capitais. Isso fez com que houvesse uma ampliação monumental de trabalhadoras e trabalhadores que sem emprego, ou com menor emprego na indústria, ou com menor emprego na agricultura, migrassem para o serviço”, exemplifica.
De acordo com professor, o setor de serviço é o que mais emprega no mundo inteiro hoje, resultando cada vez mais em trabalhos intermitentes e desprovidos de direitos. Ele cita, por exemplo, modalidades como, “contratos de zero hora”, em que o trabalhador está à disposição de uma empresa e recebe quando acionado; as atividades são realizadas por meio de aplicativos digitais, e, além da desobrigação de direitos, a empresa não é dona das ferramentas de trabalho do trabalhador, como no caso de Uber, iFood etc; e a mistificação do empreendedorismo. “No Brasil, hoje, para cinco milhões e meio, seis milhões de pessoas, se não fossem essas plataformas, o desemprego seria mair”. Em relação ao empreendedorismo, Antunes aponta que o empreendedor é, ao mesmo tempo, um burguês e um proletário de si próprio. “Nunca vi a mídia apresentar o caso de um empreendedor que se arrebentou, que é a maioria esmagadora. De cada 50, cinco conseguem desenvolver seu negócio, e 45 se arrebentam. Nunca vi o depoimento sobre os empreendedores que se arrebentaram, isso porque ela virou uma ideologia poderosa”, repara.
Movidos por essa lógica que é destrutiva, frisa o professor, expande-se em escala global o que pode-se denominar “Uberização do trabalho”, que se tornou o elixir do novo mundo empresarial. Ainda de acordo com ele, para ler o século 21 eu não posso ler o século 18. “Podemos presenciar o crescimento exponencial da era da escravidão digital. O mundo do trabalho está destroçado e precisa ser reinventado”, finaliza.
Presenças
O evento foi realizado pela Comissão Interna de Supervisão do Plano de Carreira dos Cargos Técnico-Administrativos (CIS) da UFRGS, que foi representada na coordenação da mesa por Ângela Fernandes da Silva. Também compuseram a mesa representantes de entidades de trabalhadores: Bernadete Menezes, integrante da Coordenação Geral do Sindicato dos Técnicos Administrativos da UFRGS, UFCSPA e IFRS (ASSUFRGS); Guilherme Câmara, representante do Sindicato Nacional dos Docentes Das Instituições De Ensino Superior (Andes/RS); Luciani Paz Comerlatto, da Comissão Permanente de Pessoal Docente – CPPD/UFRGS.
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Edição: Marcelo Ferreira