Rio Grande do Sul

PAPO DE SÁBADO

‘O Grito dos Excluídos não altera as disputas, mas energiza as nossas lutas’, diz Padre Edinho

‘Se alguém não se importa ou se muitos não estão nem aí, nós acreditamos que todas as vidas importam’, avisa religioso

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Padre Edinho, como é mais conhecido, é agente de Pastoral, educador popular e teatral. Atua na Articulação regional das Pastorais Sociais do RS pela CNBB - Arquivo pessoal

Mais conhecido como padre Edinho, o padre Edson Thomassim é membro da Pastoral Carcerária e articulador regional das Pastorais Sociais do Rio Grande do Sul pela CNBB. Um dos articuladores do Grito dos Excluídos e das Excluídas, que acontece neste sábado (7), destaca que, neste ano, a manifestação vai acontecer em uma das regiões mais maltratadas pelas cheias que fizeram Porto Alegre colapsar.

Na Capital, o evento terá concentração a partir das 8h30 diante da Igreja de Nossa Senhora dos Navegantes, área que ficou submersa em maio passado. “Se alguém não se importa ou se muitos não estão nem aí para as vidas, nós acreditamos que todas as vidas importam. Esse é o nosso grande grito”, diz ele. Acompanhe a entrevista:

Brasil de Fato RS – Como e por que foi criado o Grito dos Excluídos e das Excluídas no ano de 1994?

Padre Edinho – Ele é fruto de um processo de reflexão da caminhada da Segunda Semana Social Brasileira, que trouxe a história do Grito dos Excluídos como o grande tema gerador sobre as exclusões na realidade do Brasil. E também porque, em 1992, tínhamos tido uma Campanha da Fraternidade sobre excluídos, “Era Tu, Senhor”, era o slogan.

Dentro desse contexto da Campanha da Fraternidade e do processo do Grito da Semana Social, incorpora-se a ideia de que houve uma independência, houve um Grito de Independência por um príncipe, pela burguesia, pela nobreza, pelas elites. E que essa independência não era uma independência verdadeira, porque não ouvia o clamor do povo. Então, o Grito dos Excluídos é o grito das camadas populares.

O Grito dos Excluídos é o grito das camadas populares

Interessante é que, em 1993, na cidade de Montes Claros, em Minas Gerais, ocorreu um fato bastante marcante, que foi um protesto dos sem-teto. E fizeram o protesto no formato de uma marcha cívica no 7 de Setembro, trazendo esses gritos todos, dizendo que eles estavam excluídos dos desfiles, aliás. Então, não era verdadeiro o que se celebrava. É dessa experiência de Montes Claros que nasce também esse perfil combativo do dia 7 de Setembro.

BdF RS – Aqui, no Rio Grande do Sul, o Grito também começou nesse formato, com a caminhada entrando logo após o desfile do 7 de Setembro...

Padre Edinho – Lembro de um primeiro Grito, mais ali na Esquina Democrática, um evento um pouco menor, mas depois todos os outros foram nesse formato da caminhada após o desfile oficial. Reuníamos as alas por toda a (avenida) Borges de Medeiros, várias caravanas e delegações dos trabalhadores, do campo... Lembro que tinha o grupo dos carroceiros. Várias performances que se criavam...

BdF RS – Qual o ano de mudança do formato?

Padre Edinho – Foi em 2016. Eu estava na Coordenação Estadual da Pastoral Carcerária e a gente ficou circunscrito à Rótula das Cuias e o Exército não nos deixou percorrer o caminho. Tivemos que fazer o ato ali mesmo. Nessa experiência brotou o novo formato que organizamos aqui no estado, um ambiente ia ficando cada vez de mais animosidade.

Nem sempre a gente conseguia, pelas pautas dos próprios movimentos sociais, ter a presença massiva, porque isso exige mobilização, inclusive investimento dos movimentos para ter ônibus. Era um período em que estava ficando difícil essa mobilização também.

Começamos a reler as estratégias e vimos que poderíamos pensar em um outro formato de execução do Grito metropolitano. Foi essa ideia de ir para as periferias. Onde poderíamos mobilizar as organizações sociais e populares daquele território. Ali nasceu a primeira iniciativa em Canoas, na Grande Porto Alegre, lembrando a história da luta do bairro Santo Operário, que foi uma luta, desde o início, comunitária, coletiva, transformadora.

Também é o Grito da Terra. Que está dizendo para nós da sua enfermidade, do seu cansaço e do abuso

Lá teve a presença do Irmão Antônio Cecchin, teve a história da Romaria da Terra, queocorreu naquela região com um debate sobre a unidade do campo e da cidade. Várias experiências se organizaram a partir dessa pauta.

BdF RS – O Grito parece uma manifestação com esse caráter mais popular. Isto tem a ver com essa opção das pastorais, da visão da igreja de estar enraizada nas periferias?

Padre Edinho – É a disposição tanto da igreja como a de muitos movimentos sociais que também percebem essa pauta. Quando a gente começa a falar só mais para nós mesmos nas mobilizações, essa pauta, que fica numa agenda às vezes mais programática e específica, perdemos esse caráter.

O Grito não é uma agenda construída pela pauta de mobilização do movimento A, da organização B, do sindicato C, mas uma pauta geradora de conteúdo, poderíamos dizer assim. É uma pauta com palavras-chave que estão na ordem do dia dos movimentos. Então, essa consciência, essas pautas que estão, vamos dizer assim, no enunciado, no compromisso, nos tratados, nas reflexões de todo mundo, se tornam mais populares porque faz o clamor mais direto para as coisas.

Foi uma experiência bonita, porque a gente falou, mesmo que fosse entre nós, teve determinados grupos que depois optaram por fazer a caminhada meio que autonomamente. Faz parte das insurreições dentro dos processos de movimento popular. Mas ela teve um papel legal, porque era isso, tinha ali a população de rua junto. Estava chovendo, eles estavam ali, até a distribuição dos marmitex, com a CUT e o pessoal do MST.


Em 2022, o Grito dos Excluídos percorreu as ruas do Partenon / Foto: Jorge Leão

No ano seguinte, a caminhada no (bairro) Partenon trouxe aquele movimento social da comunidade, trouxe a pauta das cozinhas comunitárias. Aliás, a questão alimentar tem sido um Grito bem prático e concreto, transformado em gesto de solidariedade. Podemos usar uma expressão bem até religiosa, de comensalidade.

Ou seja, a gente termina cada Grito fazendo a refeição juntos. Podemos pensar num olhar teológico, porque é isso. Estamos ali comendo, todos iguais, aquela comida que é distribuída para quem quiser, naquela hora para quem está ali na caminhada, ou quem se aproxima, porque pede a comida.

Aqui em São Leopoldo, ano passado, tinha a mesma pauta, a proximidade, vários temas geradores. Choveu, mas tinha o tema das pessoas do Movimento Nacional de Luta pela Moradia, que tinham sido vitimadas também pelas águas de junho, de modo especial, depois de setembro ali um pouco também. Mas mais ali em junho quando teve a enchente na região metropolitana.

No ano passado, celebrava-se o Grito dentro de um ginásio com as diferentes vozes clamando e dizendo, naquele formato de encontrão. Mas estávamos vivendo a tragédia que se anunciava no Vale do Taquari, no início de setembro de 2023.


Ano passado, devido às chuvas, a mobilização foi transferida das ruas da periferia de São Leopoldo (RS) para o salão da Paróquia Santo Inácio de Loyola / Foto: Katia Marko

BdF RS – E um ginásio que esse ano veio se tornar um abrigo das pessoas atingidas em São Leopoldo...

Padre Edinho – Na primeira etapa. Depois ele também foi atingido. O ginásio e a paróquia também ficaram quase dois metros embaixo d'água. Aquela paróquia ficou com nove comunidades embaixo d'água. O seu povo, suas estruturas públicas, comunitárias, religiosas, seus templos de religião, suas casas de oração de matriz africana, tudo submerso.

E agora a gente é convidado a reviver esse Grito, que é um Grito dos povos, dos pobres, mas também é o Grito da terra. Que está dizendo para nós da sua enfermidade, do seu cansaço e do abuso que tem sido feito sobre essa terra.

Os mais pobres das periferias, que já estavam ali em condições de fragilidade humana, se tornaram ainda mais fracos

E justamente o Grito neste 2024 vai acontecer em uma região de Porto Alegre das mais atingidas pela enchente. E com alto grau de vulnerabilidade, porque é uma população pobre, já estigmatizada e criminalizada. Reside na entrada da cidade já que os interesses do capital e da gestão pública (entendem que), na estética da cidade, o pobre não tem lugar.

Este é o elemento. Já havia o estigma natural. Então, vítimas de toda essa tragédia climática, ambiental e ecológica, (as pessoas dali) ficam ainda mais estigmatizadas.

Me surpreendeu a quantidade de galpões de recicladores naquele território e que também já estão em uma luta intensa por políticas públicas. Vamos dar visibilidade a essa temática também neste ano.

Neste ano, o tema é “30 Anos do Grito dos Excluídos e das Excluídas, a Vida em Primeiro Lugar. Todas as vidas importam, mas quem se importa?” Quem se importa com a realidade dos miseráveis que se tornaram ainda mais vulneráveis sendo vítimas dessa tragédia? Existe uma parcela da população que, claro, foi também atingida mas ela se ressignifica, se recompõe, se reorganiza. Mas e os miseráveis? Os mais pobres das periferias, que já estavam ali em condições de fragilidade humana, se tornaram ainda mais fracos, mais vulneráveis às contradições que esse sistema coloca. É um elemento muito sério para nós também.

BdF RS – O Grito sempre trouxe muito presente essa questão da desigualdade. E, recentemente, uma pesquisa apontou que 40% das pessoas (no país) saíram da extrema pobreza, mas, ao mesmo tempo, aumentou o fosso entre eles dos super ricos

Padre Edinho – A desigualdade continua. É uma questão muito forte no Brasil. É a razão pela qual seguimos lutando e sendo fiel às causas nossas.

No material de divulgação do Grito destacamos que a riqueza dos cinco homens mais ricos mais que dobrou entre 2020 e 2023, saindo de US$ 405 bilhões para US$ 869 bilhões. São números que nem consigo calcular. É irreal para o nosso universo. Este contraste mostra que a gente precisa se somar aos pequenos, com as pequenas, com as organizações, sejam quais forem, mas que são as organizações populares. Nosso grito nunca será ouvido por essas estruturas que estão colocadas aí.

A riqueza dos cinco homens mais ricos mais que dobrou entre 2020 e 2023

E, às vezes, o próprio Estado está surdo. Acho que temos esse cenário no Rio Grande do Sul. Temos uma capital hoje surda e um governo estadual surdo a essas realidades. E temos parte do próprio governo federal surdo. Porque, embora o presidente Lula, embora parte da governança venha das lutas populares, estamos reféns de uma estrutura e a essa disputa do Estado que está colocada hoje também no Congresso Nacional, que é antipopular, perversa e quer prejudicar.

Então, isso exige de nós pé na estrada, caminhada, protesto, levantar-se, com a autonomia necessária dos povos, das comunidades, das organizações, do movimento popular. É isso. A gente viu agora as queimadas. Quer dizer, que casualidade! Não sei quantos focos de queimadas em São Paulo ao mesmo tempo.

Um acaso que não é acaso, que é crime, que é intencional, que é perverso. E quem faz isso faz para justamente atrapalhar qualquer projeto de avanço popular, de defesa da vida, da vida dos indígenas e dos povos tradicionais. Temos aí o feminicídio presente absurdamente, com números gigantescos, o extremo fascismo que está aí - se é que tem fascismo que não seja extremo...

Não tem como, na fidelidade à nossa espiritualidade, que está centrada em Jesus e no seu projeto, não estar desse lado da história

Neste sentido, a nossa caminhada neste sábado, saindo da Igreja de Nossa Senhora dos Navegantes, que tem um simbolismo de sincretismo popular, para percorrer uma caminhada naquele território até ali o bairro, a praça, um território que é altamente vulnerável e que é vítima dessa realidade, que é estigmatizado, é um grito gigantesco que nos potencializa a continuar nossas lutas também.

Este Grito serve para isso. Sabemos que o Grito não vai alterar a ordem das disputas políticas, mas ele energiza as nossas lutas, potencializa os nossos gritos diários, o grito das populações, das comunidades, dos territórios, das lideranças, das minorias e tantos e tantas que estão permanentemente gritando e muitas vezes calados, mutilados, impedidos, sufocados pela realidade que está colocada.

BdF RS – A última encíclica do Papa Francisco traz muito forte essa questão do cuidado com a Mãe Terra, o debate das mudanças climáticas, também a Economia de Francisco e Clara, que traz uma outra proposta de economia para o mundo. Mas muitas pessoas questionam o que a Igreja tem a ver com a política ou por que tem que estar organizando movimentos sociais. O que a Igreja tem a ver com isso?

Padre Edinho – Nosso referencial é que a vida é um dom sagrado. Para nós, ser um dom sagrado é porque é dom de Deus. Então, quando a gente se coloca nessa condição, tudo que tem a ver com a vida tem a ver com o modo com que a gente professa a fé, no caso nosso, do modo que a gente acredita.

Quando temos a figura do Papa Francisco, que faz aparecer com maior visibilidade as grandes pautas - dentre elas, fruto da Laudato Si, da Laudato Deum e da Fratelli tutti, são os três documentos - além da fala dele aos movimentos populares, que são importantes, não é uma encíclica, mas é um tratado do Papa também, ele nos coloca em saída mesmo para estarmos junto com esse território. Não tem como, na fidelidade à nossa espiritualidade, que está centrada em Jesus e no seu projeto, não estar desse lado da história.

E agora, no lado da história que clama pelo cuidado com a Mãe Terra, pelo cuidado da convivência humana nesse território. Nunca esqueci uma formação do movimento ecumênico onde que dizia assim: “O ecumenismo é como a gente vive na casa comum, mas a economia é como a gente administra essa casa comum. E, se ela é perversa, onde alguns podem mais e outros menos, ela mata”.

A consciência ecológica é como lidamos com essa casa comum. Não tem como separarmos as lutas de defesa da vida. E, por isso, nos envolvemos em pautas políticas.

Desde o Papa Paulo VI, usa-se a expressão “A política é a melhor forma de caridade”. Ela foi reafirmada por todos os outros papas, até os mais conservadores. Claro, podemos votar no tipo de política que cada um compreendeu. Mas existe um fio dourado: toda coerência política pautada no cristianismo verdadeiro não é um discurso religioso, mas uma presença testemunhal cristã. É necessariamente uma pauta para a defesa da vida. Está ali e é necessária. Por isso, não há o que temer.

O Papa Francisco, podemos dizer, é o maior ´gritão` na atualidade

Participamos dessas causas não por querermos sucesso, mérito, vitórias. A gente já está no fracasso, porque são os fracassados da vida, segundo a ordem do sistema, aqueles do lado dos quais estamos, justamente por causa da fidelidade a essa espiritualidade humana. Não tem como ser fiel e não estar nesse lado. Às vezes, as instituições religiosas, as estruturas religiosas ficam receosas, se amedrontam. Mas a gente não pode esquecer que as tensões são consequência da nossa fidelidade. E a fidelidade nossa é que a vida pulsa em primeiro lugar. E toda a vida importa.

Como diz o Grito, se alguém não se importa ou se muitos não estão nem aí para as vidas, nós acreditamos que todas as vidas importam. Esse é o nosso grande grito. E o Papa Francisco, podemos dizer, que é o maior ´gritão` na atualidade. Porque ele faz diariamente seus gritos na defesa da vida em todo mundo.


Edição: Ayrton Centeno