Rio Grande do Sul

ensaio

sair da ilha para ver a ilha

ouvir a minha história sendo contada por outra pessoa me mostra que as nossas feridas são mais comuns do que imaginamos

Brasil de Fato | Barra de Ibiraquera (SC) |
acho que mudar tem essa coisa de viver de novo, mas também de morrer - ana c

nunca se sabe quando vamos sentar à beira de uma fogueira
e ouvir a nossa própria história
contada por uma outra pessoa. 

alguns escritores já relataram isso. uma vez uma amiga me disse:
aninha, nessa história toda de publicar um livro
o mais legal
é que alguma pessoa completamente desconhecida vai ler
teus versos num sarau
para outras pessoas desconhecidas

e assim
a gente vai ficar eternizada no mundo
através do coração dos outros.

escrever pra mim sempre foi um processo exigente. importante, sim, mas exigente. minha cabeça produz os textos, mas é meu orgulho quem revisa.
e as minhas referências, muitas românticas, me fazem perseguir uma excelência por vezes bastante (auto) sabotadora.

nesses momentos, eu preciso de espaço. como um gato que, quando se assusta, se esconde por alguns dias... mas que, invariavelmente, retorna ao convívio.

um dia eu li num livro: amar é uma ação.
um dia eu li num pixo: amar é permanecer.

e eu (mesmo amando Porto Alegre)
reconheço que fugi. 

na primeira oportunidade de escapar da capital gaúcha eu fui passar dez dias na praia, tomando sol e oxigenando pulmões e ideias.

e foi ali que eu sentei à beira de um fogo, e entre 7 bilhões de histórias no mundo, ouvi na voz de outra pessoa a minha própria história. uma outra mulher, de mesmo nome, que se mostrou parceira nas mesmas dores que as minhas.


e foi ali que eu sentei à beira de um fogo, e entre 7 bilhões de histórias no mundo, ouvi na voz de outra pessoa a minha própria história / ana c

ouvir a minha história sendo contada por outra pessoa me mostra que as nossas feridas são mais comuns do que imaginamos. elas são coletivas. ainda mais quando se diz respeito a um evento climático, que muda toda a perspectiva do que conhecíamos por vida. 

eu, particularmente, sempre gostei de mudar. mais que isso, sempre me foi fácil me adaptar a novas situações. eu mudei de casa inúmeras vezes na infância e adolescência. mudei de carreira, de rumo profissional.
eu mudo a playlist no meio da música, mudo meu esporte favorito a cada ano, mudo a disposição dos móveis do quarto a cada nova estação. 

acho que mudar tem essa coisa de viver de novo, mas também de morrer.

e quando a gente viaja, é uma amostra disso. um ritual de deixar algo morrer (a presença, talvez?) para que outra coisa possa viver. 

viajar é mudar o cenário onde a vida acontece.
sair de Porto Alegre foi uma forma de me distanciar do foco do problema, pra tentar ver mais de longe. de um outro ângulo, ter outro ponto de vista. 

lembrar que ainda existem lugares intocados pela dor. onde ainda existe ar para respirar sem o cheiro de lama.


lembrar que ainda existe ar para respirar sem cheiro de lama / ana c

hoje me encontro em exílio. minha segunda fuga, desde que nossas vidas alagaram.
a primeira deserção foi para me observar de longe. ela trouxe consigo suas pequenas mortes. as pequenas despedidas que cada partida traz na bagagem. 

como uma amiga querida que viaja pra longe, levando uma coleção de boas memórias construídas em um final de semana de sol e sorrisos.
uma bolha de conforto que, quando estoura, deixa um rastro.
como se o coração fosse um pinguim falecido à beira–mar.


uma bolha de conforto que, quando estoura, deixa um rastro / ana c

agora, na segunda fuga, sinto que as coisas tomaram maiores proporções. assim como as tarefas de retorno e reconstrução se sobrepõem nas páginas da minha agenda, as ondas avançam pela areia da praia. a vida acontece, implacável.

assim como eu, o mar está bastante mexido e observar sua intrepidez me dá ganas de correr.
para movimentar. para respirar. para aquecer.


assim como eu, o mar está bastante mexido e observar sua intrepidez me dá ganas de correr / ana c

foi numa dessas, correndo para sentir a vida que me deparei com a materialização da morte. no sopé de uma duna, estendido, o cadáver de um filhote de baleia franca, que jazia ao sol do inverno litorâneo. na sua pulsão ferrenha, o inexorável da vida derruba os mais vulneráveis, entregando um despejo bem maior, que exige uma necropsia voluntária e minuciosa. coletiva.

são camadas e mais camadas de pele, carne e vísceras a se remover. algo assim como é o dissecar dos sentimentos.


são camadas e mais camadas de pele, carne e vísceras a se remover. algo assim como é o dissecar dos sentimentos / ana c

escrever é como descarnar a si mesmo.
o poeta é um açougueiro. um biólogo de sua própria natureza.
que depois de fazer sua autópsia emocional
emite um laudo dos próprios sentimentos.

vai retirar amostras das emoções cruas. fazer lâminas das reminiscências para analisá-las ao microscópio.
vai sangrar, ser trabalhoso e eventualmente, cheirar mal.

e no final dessa polêmica exposição, ossos firmes permanecem, pra quem se der ao acaso de observar.

sobre escrever para expor as entranhas da dor, ou
quando já não se pode nadar, está tudo bem morrer na praia. 

às vezes a gente não consegue se salvar.

às vezes a gente acha que vai conseguir salvar alguém, e no final, é por essas pessoas que acabamos sendo salvas.

é preciso sair da dor para sentir a dor.


É preciso sair da dor para sentir a dor / ana c

* ana c, de carolina, é comunicadora por vocação, produtora cultural por capricho e multiartista por essência. mulher lésbica, feminista e latinoamericana, escreve para dar sentido ao que sente.

Edição: Katia Marko