Rio Grande do Sul

NATUREZA

Novo Airão: um projeto de desenvolvimento socioambiental no coração da Amazônia

Uma visita à cidade sede do parque nacional situado no segundo maior arquipélago fluvial do planeta

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Comunidade ribeirinha Tiririca é local de intercâmbio cultural e faz parte da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do rio Negro - Foto: Marco Estivalet

A primeira chegada em Novo Airão, uma pequena cidade a 200 quilômetros de Manaus (AM), aconteceu numa das escalas do navio Grand Amazon, da Ibero Star, dentro da programação do projeto “Navegar é Preciso”, um passeio literário e musical de cinco dias pelas águas do rio Negro. A internet é desligada dentro do navio em boa parte do percurso para que a literatura seja o assunto principal. Itamar Vieira Júnior, Jarid Arraes, Marcelino Freire, Tati Bernardi e Christian Dunker foram os escritores convidados e Mônica Salmaso cuidou da parte musical.

Novo Airão é sede do Parque Nacional de Anavilhanas, nome do segundo maior arquipélago fluvial do mundo com suas 400 ilhas, 60 lagos e dezenas de paranás que são canais de rio. O parque de Anavilhanas protege três espécies de mamíferos aquáticos que correm risco de extinção: o boto-vermelho, o boto tucuxi (cinza) e o peixe-boi. O maior arquipélago fluvial do planeta também fica no rio Negro, Mariuá, aproximadamente 200 quilômetros ao Norte cuja sede fica na cidade de Barcelos. Mariuá possui 1.400 ilhas e dezenas de lagos e é protegido pelo Parque Nacional do Jaú e pelo Parque Estadual Serra do Araçá.


Passeio na floresta com aprendizado sobre plantas medicinais / Foto: Marco Estivalet

Uma proposta inovadora

A escala em Novo Airão durou aproximadamente uma hora e o único objetivo era conhecer, mesmo que superficialmente, a Fundação Almerinda Malaquias. O objetivo maior era para que nós, turistas interessados em literatura, comprássemos os lindos trabalhos em madeira produzidos por dezenas de artesãos. Aliás, o maior tempo nessa escala foi gasto na ampla loja onde estavam expostos os objetos. Antes houve uma meteórica visita a uma sala de aula com uns 30 alunos cuja média de idade não ultrapassava seis ou sete anos.

Todos se foram e eu fiquei mais algum tempo ali conversando com uma professora que me explicou que a Fundação atende aproximadamente 160 crianças e jovens de Novo Airão num projeto inovador de desenvolvimento socioambiental. A história da Fundação era bem mais interessante do que parecia naquela conversa. Ela mesmo disse que a história era muito mais bonita do que ela poderia contar porque era cheia de idealismo, talvez mais cheia de sonhos do que idealismo … Mas agora era uma realidade…

Tirei fotos das crianças e sabia que aquilo ali era diferente de qualquer realidade que eu esperava viver na Amazônia. Caminhei até a loja para conhecer as peças de artesanato que, no início do projeto, em 1997, utilizava muito material descartável da indústria naval da cidade, principalmente a itaúba preta também conhecida como louro itaúba.


Crianças de Novo Airão / Foto: Marco Estivalet

Aproveitando a madeira de árvores caídas

Com o fechamento da maioria dos estaleiros em 2006 (atualmente Novo Airão possui quatro pequenos estaleiros) a Fundação passou a utilizar a madeira de árvores caídas. No início eram apenas homens adultos que produziam as peças de artesanato, depois as mulheres ganharam seus espaços e aquelas crianças que conheci na sala de aula também começavam a trabalhar cedo com a madeira, com o reaproveitamento de material descartável e também com a fabricação de sabonetes.

A segunda viagem até Novo Airão aconteceu de carro partindo do porto de Manaus logo após o desembarque do Grand Amazon. Cruzamos a imensa ponte sobre o rio Negro, construída em 2011, e seguimos pela rodovia AM 070 em direção a Manacapuru e um pouco antes de chegar nessa cidade pegamos a AM 352, uma rodovia totalmente abandonada pelo governo do Amazonas. O asfalto é cheio de crateras, algumas imensas, oferecendo perigo sobretudo para moradores locais que transitam de motos carregando até cinco pessoas e outros veículos que não oferecem nenhuma segurança e muitas vezes são obrigados a dirigir na contramão para evitar uma sequência de buracos.


Rio Negro / Foto: Marco Estivalet

O motorista diz que o governo culpa a chuva e eu pergunto por que não havia um único buraco na AM 070 que é uma rodovia com duas pistas separadas por um largo canteiro? Ele não responde e segue desviando de uma quantidade absurda de buracos. Sigo provocando com a alegação de que, talvez, o Amazonas seja o estado brasileiro onde o governador pouco tem a se preocupar com rodovias. Mais silêncio como resposta… Mas no final da viagem eu percebo que o asfalto é liso, sem buracos, e depois fico sabendo que a prefeitura cuida daquele trecho que deve ter no máximo uns dez quilômetros.

Conheci Manaus como repórter no início da década de 1970 e me parecia uma cidade ordenada. Retornei em 1985 quando desci o rio Madeira de barco desde Porto Velho e ainda parecia uma cidade bem ajeitada, mas muito diferente da Manaus caótica de hoje com pouco mais de dois milhões de habitantes e igrejas evangélicas de todos os tamanhos espalhadas por todos os cantos, muitas vezes uma ao lado da outra, com suas diferentes tendências mas todas explorando o nome de Jesus.

Embora com pouco mais de 20 mil habitantes, Novo Airão parece uma cidade planejada, com ruas largas, asfaltadas, muitas praças e um trânsito tranquilo. Ou seja, parece uma pequena cidade civilizada e que assim permaneça. A pousada onde ficamos apoia a Fundação e ali eu pude descobrir um pouco mais sobre quem foram Almerinda e Malaquias, um casal de caboclos ou ribeirinhos, pais de 16 filhos – 11 chegaram na idade adulta - que desde cedo foram educados com foco na valorização da floresta que eles resumiam como a terra em que viviam. Um dos filhos, Miguel Rocha, conheceu o suíço Jean-Daniel Vallotton no início dos anos 1990 quando tentava alugar um barco para ir até Parintins.


Reserva de Desenvolvimento Sustentável do rio Negro conta com 19 comunidades ribeirinhas / Foto: Marco Estivalet

Pedagogia Waldorf na floresta

Meio sem querer, Jean foi apresentado a um pequeno projeto de geração de renda baseado na marcenaria e se encantou. De volta a Suíça, Jean-Daniel reuniu amigos e empresários da região de Montreux-Villeneuve e criou uma ONG, a Associação Ailleurs Aussi, e três anos mais tarde estava de volta à Novo Airão com dois contêineres carregados de maquinário e ferramentas para facilitar o trabalho de marchetaria. Assim aquele pequeno projeto de 1997 começou a tomar forma a partir do ano 2000.

Novo Airão possui 27 escolas públicas, a grande maioria municipais, duas em turno integral, uma visando o ensino tecnológico e duas escolas indígenas, a Arabyry e a Tapyrymanyty. Com novas parcerias para financiar o projeto, a Fundação Almerinda Malaquias precisava ganhar a confiança da população como do poder público e logo a prefeitura de Novo Airão passou a apoiar a ONG.

Com isso a educadora terapeuta Paula Mourão propôs uma metodologia inovadora na região inspirada na pedagogia Waldorf, criada em 1919, em Stuttgart, pelo alemão Rudolf Steiner, que inicialmente criou uma escola para os filhos dos operários de uma fábrica de cigarros, a Waldorf-Astoria, que deu origem ao nome.

No projeto de Paula, as crianças de Novo Airão estudam em escola regular e fazem o contraturno na Fundação com atividades artísticas e artesanais levando em conta a individualidade e a liberdade de cada aluno. Perguntei sobre a evasão escolar em Nova Airão e me garantiram que é praticamente zero, assim como a criminalidade. Com o sucesso na Fundação, a metodologia de educação começou a ser introduzida em outras comunidades ribeirinhas sempre com o objetivo de preservar o meio ambiente.

O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICM-Bio) também é muito atuante nessa região e a sua sede fica ao lado da Fundação com um espaço para observar os botos-vermelhos em liberdade. A entrada é livre mas é obrigatório assistir um video educativo sobre a preservação da fauna e da flora ameaçada.


Botos-vermelhos / Foto: Marco Estivalet

Reserva de desenvolvimento sustentável

Uma das atividades não obrigatórias na pousada mas ligada à Fundação é um passeio de barco até uma comunidade ribeirinha. Elas são 19 no total e fazem parte da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do rio Negro onde é possível conhecer a culinária típica, artesanato, passeios pela floresta e um intenso intercâmbio cultural. Parece que Tiririca é a comunidade favorita para esses passeios talvez pela proximidade com a pousada, uma viagem que dura aproximadamente meia hora. Ali deixamos uma caixa de plástico com peixe e carne que certamente seriam servidos no nosso almoço.

Seguimos em frente e mais 15 minutos pelas águas do rio Negro chegamos num ponto onde um guia local nos aguardava para um passeio de três horas pelo meio da floresta onde nenhum animal é avistado mas o ensinamento com plantas medicinais é bastante rico. Eu mesmo fui vítima de um pequeno acidente que abriu uma ferida no dedão do pé. Nosso guia achou uma árvore conhecida como “goiaba de anta”, arrancou um pedaço da casca e com um facão raspou o interior da casca e colocou na ferida para cicatrizar. Encerrado o passeio pela mata, retornamos ao barco e depois à comunidade Tiririca.


Restaurante Canto do Japiim / Foto: Marco Estivalet

Ali vivem 17 famílias com aproximadamente 80 pessoas e durante a nossa visita não vimos uma única criança pois estavam em horário de aula. A extração da borracha, o corte indiscriminado de árvores sem autorização e outros crimes ambientais ficaram para trás e apesar da vida simples, mas digna, todas as comunidades que fazem parte da Reserva de Desenvolvimento Sustentável garantem que aquela parte da Amazônia vai sobreviver. De resto, o almoço no restaurante Canto do Japiim estava excelente.



Edição: Ayrton Centeno