Rio Grande do Sul

ENTREVISTA

'Recriar o DEP dará a Porto Alegre uma estrutura de primeiro escalão contra as cheias', diz ex-diretor

Por duas vezes no comando do departamento extinto, Vicente Rauber descreve aqui como evitar que a catástrofe se repita

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Vicente Rauber dirigiu o Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), que foi extinto pela prefeitura de Porto Alegre - Foto: Alexandre Garcia

Engenheiro especializado em planejamento energético e ambiental, Vicente Rauber dirigiu o Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), por dois períodos. Coordenou o Conselho Municipal de Saneamento e Meio Ambiente e criou o Conselho Municipal de Ciência e Tecnologia Ambiental. Foram duas entre suas muitas atribuições na prefeitura de Porto Alegre.

No estado, presidiu a CEEE e, no governo federal, foi um dos diretores da Petrobras. Além disso, também atuou na iniciativa privada.

Rauber é um dos 48 especialistas que assinou o manifesto sobre as condições do sistema de proteção contra as cheias da capital gaúcha. Aqui, ele responde a quatro perguntas essenciais que giram em torno do tema “O que os municípios e o estado precisam fazer para que o desastre das cheias não se repita?”

Brasil de Fato RS - Na primeira quinzena deste mês, uma comitiva de pesquisadores e autoridades da Holanda, a convite do governador Eduardo Leite e do prefeito Sebastião Melo, visitou e avaliou o sistema de proteção contra inundações de Porto Alegre. Que novidades trouxe essa delegação?

Vicente Rauber - Nada além do que já sabíamos. Ratificaram o que os 48 signatários da “Manifestação aos Portoalegrenses sobre o Sistema de Proteção Contra Inundações de Porto Alegre” haviam afirmado em 13 de maio passado. O que ainda foi ratificado por dossiê feito por engenheiros do Dmae, ex-engenheiros e trabalhadores de extinto DEP, inúmeros pesquisadores e todos e todas que conhecem o sistema e o seu funcionamento: necessita de manutenção ordinária e corriqueira para o seu adequado funcionamento. Em relação de atividades publicadas pela direção do Dmae, desde 2021 não há nenhum recurso para manutenção ou investimento nas comportas e casas de bombas, elementos críticos no funcionamento do sistema.

Porque foram chamados os holandeses? Técnicos, ex-dirigentes e pesquisadores e trabalhadores locais foram ignorados

É necessário recuperar a integridade do sistema, fazer o monitoramento de seus níveis de integridade. Monitorar vazões e ventos, com alertas para a população. E criar um sistema integrado no estado” disseram os holandeses.

Ouvir os holandeses não é problema. Afinal, nos Países Baixos 70% da população sobrevive em 2/3 de sua área situada abaixo do nível do Mar do Norte graças à proteção de diques, que é o mesmo recurso utilizado em nosso sistema. As crianças, quando vão à praia, fazem diques de areia ao invés de castelos de areia.

O problema é como e porque foram chamados os holandeses. Todos os técnicos, ex-dirigentes, pesquisadores e trabalhadores locais acima citados foram não só ignorados como agredidos. Ou seja, mais uma vez prevaleceu o “espírito de vira-lata”. Ou se tentou criar um “grande fato” para desviar a sua própria parcela de responsabilidade na catástrofe.


Centro e diversos bairros de Porto Alegre ficaram submersos por causa da falha do sistema de proteção contra enchentes / Foto: Ricardo Stucker

BdF RS - Que medidas são prioritárias agora?

Rauber - As medidas constantes no item 3, “Assim que as águas baixarem”, de nossa manifestação... Sinteticamente: revisar e consertar todas as 14 comportas externas e todas as existentes junto às 23 casas de bombas do sistema e outros reparos urgentes nas casas, bem como repor a integridade dos diques da Zona Norte (Santo Agostinho/Fiergs e Sarandi), deteriorados há anos; contratar a ampliação e modernização das casas de bombas, tendo como referência inicial o plano elaborado por ex-engenheiros do extinto DEP em 2014. Integrava um plano que também envolvia a bacia do Arroio Moinhos, no bairro Partenon.

Para a realização deste plano, o Dmae pode utilizar parte dos R$ 430 milhões que tem em aplicações financeiras

Na época, a então presidente Dilma Rousseff liberou R$ 124 milhões a fundo perdido para esta finalidade. Mas essa cifra, em 2019, acabou devolvida porque os dirigentes de então simplesmente não apresentaram os respectivos projetos executivos à Caixa Econômica Federal. Aliás, o DEP foi extinto em 2017 pelos mesmos dirigentes. Agora, para a realização deste plano, o Dmae pode utilizar parte dos seus R$ 430 milhões depositados nos bancos em aplicações financeiras. Também recriar o DEP ou secretaria mais ampla, pela sua absoluta necessidade pública, devolvendo à Porto Alegre a condição de única capital brasileira com estrutura de primeiro escalão para tratar de drenagem pluvial e proteção contra inundações. Ainda, ao lado da União, integradamente, estudar um sistema estadual de proteção contra inundações, aproveitando estudos já realizados pela extinta Metroplan.

O sistema de Porto Alegre circunda a cidade a começar na Free Way com a avenida Assis Brasil seguindo até o Morro da Assunção, sempre na cota do nível de proteção de seis metros acima do nível do mar. As regiões ao Sul não possuem esta proteção. Também o importante arroio Feijó, divisão entre Porto Alegre e Alvorada e parte de Viamão, não está incluído em nosso sistema. Ambas as situações podem ser contempladas.

As políticas públicas possuem um 'Patinho Feio' que se chama saneamento ambiental

BdF - E quanto ao Rio Grande do Sul?

Rauber - Estudar, elaborar, projetar planos de proteção para todas as bacias hidrográficas, a começar pela região hidrográfica do Guaíba na área metropolitana, como propusemos em nossa “Manifestação...” e anunciada por ministros do governo Lula em 29 de maio. Para isso há urgente necessidade de serem criadas estruturas para definir as obras e ações estruturantes, sua execução, e, importantíssimo, definir que estruturas irão manter estas obras e ações (para não serem perdidas ou sequer funcionarem quando necessário). Também, mais do que nunca, há necessidade de medidas preventivas.

O que acontece? As políticas públicas possuem um “Patinho Feio”, que é aquele personagem infantil da história do dinamarquês Hans Christian Andersen. Chama-se saneamento ambiental. Quer dizer, água tratada, esgotos, resíduos, drenagem pluvial e proteção contra inundações. Os municípios possuem a titularidade constitucional, ou seja, a responsabilidade, sobre estes serviços, mas não possuem suficientes recursos financeiros e operacionais para realizá-los.

Em 2017, quando o DEP foi literalmente extinto, a dita 'modernidade' conseguiu o extraordinário retrocesso de 47 anos

Na família do “Patinho Feio” ainda há um “filho bastardo” chamado drenagem pluvial e proteção contra inundações. A situação desse “filho bastardo” foi tratada em Porto Alegre a partir de 1970, sendo resultado disso a criação do Departamento de Esgotos Pluviais em 1973. Agora, em 2017, quando o DEP foi literalmente extinto, a dita “modernidade” conseguiu o extraordinário retrocesso de 47 anos, voltando ao ano de 1970!

Ou transformamos, como fez Andersen, o “Patinho Feio” e seu filho bastardo num vistoso cisne ou afundaremos cada vez mais neste inaceitável “novo normal”.

BdF RS - O que devem fazer os municípios?

Rauber - Vamos por partes. Vamos começar entendendo o que acontece em nosso planeta, onde a natureza, nos anos recentes, tem dado fortes avisos com intensos distúrbios climáticos. Aqui, no Rio Grande do Sul, para que escutássemos bem, nos enviou três (!) catástrofes nos últimos oito meses. Ainda ouvimos que é São Pedro o “manda chuva” e que os excessos de chuva, seca, calor e frio são castigos divinos. Vamos lembrar que nenhum Deus deseja o mal e que colocou na terra homens e mulheres livres para resolverem seus problemas.

Então, já passamos da hora de negar os negacionistas e atender à ciência: os distúrbios climáticos são decorrência do aquecimento global pelo excesso dos gases de efeito estufa (GEEs), que necessitam ser fortemente reduzidos.

Vamos olhar para Medellin, na Colômbia, ex-capital mundial do narcotráfico, hoje exemplo internacional com seus corredores verdes

As melhores decisões que temos para esta finalidade, mesmo que consideradas incompletas ou insuficientes, são as resoluções dos países durante as Conferência das Partes (COPs), sendo o Brasil um dos proponentes e signatários, e trazê-las para os municípios.

As principais medidas urgentes devem ser: reassentar as populações hoje situadas em áreas de risco, tanto na beira das águas quanto em encostas. Espaços liberados devem ser transformados em áreas verdes públicas com vegetação captadora de GEEs; ampliar as áreas verdes. Vamos olhar para Medellin, na Colômbia, ex-capital mundial do narcotráfico, hoje exemplo internacional com suas dezenas de corredores verdes; intensificar a coleta e o tratamento de resíduos, fundamentalmente com reusos e reaproveitamentos, em especial dos materiais plásticos. Conscientizar sobre o lançamento de resíduos – e, se necessário, coibir essa prática - em quaisquer águas; entender “terra nua” como um terrível palavrão.

As chuvas arrastam a porção superior dos solos para canalizações, arroios e rios. Então, a terra degradada emite GEEs enquanto que, se estivesse com cobertura vegetal, captaria GEEs, e, finalmente, racionalizar intensamente o tráfego com valorização do transporte coletivo e promoção do uso de veículos elétricos.

Durante a 'Administração Popular', no Orçamento Participativo, 60% dos participantes exigiram saneamento como primeira prioridade

Quando iniciamos as “Administrações Populares”, já na primeira rodada do Orçamento Participativo, 60% dos participantes exigiram saneamento como primeira prioridade dos investimentos. Resultado: universalização de água potável, intensificação da coleta e tratamento de esgotos e resíduos, implantação da reciclagem de resíduos através de entidades populares, integração com as áreas do meio ambiente com o Programa Guaíba Vive e Fórum Municipal de Saneamento e Meio Ambiente.

E o DEP com as atividades de drenagem pluvial e proteção contra inundações? Sistema de proteção com manutenção regular e operação 24 horas por dia. Constantes programas de recuperação e desobstrução de canalizações. Mais intenso programa nos 20 arroios do município. Pouca gente sabe mas, em investimentos novos aplicamos concretagens equivalentes a 14 ginásios Tesourinha, o nosso centro de eventos municipal. Sem falar na educação ambiental incluindo turmas com programas permanentes.

Assista à ediçao do Podcast De Fato que teve Vicente Rauber como convidado:


 
 

 

 

Edição: Marcelo Ferreira