Rio Grande do Sul

Análise

Uma década de retrocessos previdenciários 

'Nenhuma das reformas objetivou qualificar o sistema ou consolidar a sustentabilidade alcançada há anos'

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Municipários de Porto Alegre amargam investidas governamentais contra o já equilibrado regime próprio de previdência gerido pela autarquia Previmpa - Reprodução: Previmpa

Na última década, especialmente nos governos Marchezan Júnior e Sebastião Melo, os municipários de Porto Alegre amargaram reiteradas investidas governamentais com vistas ao estrangulamento do já equilibrado regime próprio de previdência social, gerido pela autarquia Previmpa. Nenhuma das reformas objetivou qualificar o sistema ou consolidar a sustentabilidade alcançada há anos, como propagado pelos mais recentes governos municipais. 

As diversas tentativas governamentais orientaram-se pela negação da história e dos compromissos previdenciários assumidos quando da criação do Previmpa, assim como pela desconsideração de que as reservas gravadas de tal finalidade não pertencem ao erário municipal, eis que seus verdadeiros proprietários são os segurados e os pensionistas do regime próprio de previdência. Além de negarem a história da previdência municipal, a distorceram, narrando fatos com seletividade, como veremos. Um ministro do governo federal, em 1994, disse: “O que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde”. 

Comecemos pelo breve histórico previdenciário, a partir de 1998, quando esse ramo da seguridade social foi profundamente impactado pela Emenda Constitucional nº 20. Até então, imperava a autonomia dos regimes próprios de previdência dos estados e dos municípios na instituição e na gestão dos respectivos planos securitários de seus servidores, sem qualquer imposição do ordenamento jurídico supremo quanto ao caráter contributivo, sem fixação de idade mínima e sem obrigação de equilíbrio atuarial. A inativação dava-se por tempo de serviço e, a partir de então, o critério foi alterado para tempo de contribuição. 

No período anterior a setembro de 2001, a gestão das pensões incumbia ao Montepio dos Funcionários Municipais, pessoa jurídica de direito privado que se alimentava de 4,75% de contribuição dos segurados estatutários e outros 4,75% de cota patronal. Já as aposentadorias eram custeadas pelo caixa-geral do município e de suas autarquias, sem fundo específico, sem descontos dos segurados e sem contribuição patronal. 

Em atendimento à Emenda Constitucional nº 20/98, estudos atuariais elaborados pela Caixa Seguros apuraram, em maio de 2001, dívida previdenciária do município na ordem de R$ 2,954 bilhões, correspondente ao montante que deveria ter sido arrecadado pela contribuição dos segurados mais cota patronal dos então servidores municipais para o custeio dos benefícios a eles garantidos. Vale esclarecer que a imediata inserção de todos os estatutários de carreira no regime previdenciário de capitalização exigiria o repasse do referido montante ao fundo respectivo. Trata-se de valor que comprometeria o dobro do orçamento anual integral do Município, à época correspondente a R$ 1,257 bilhões, conforme a Lei Municipal nº 8.842/2001. 

Em Porto Alegre, mantendo em regime de pagamento de caixa os benefícios consequência da impossibilidade de aporte imediato da referida importância pecuniária, a Caixa Seguros orientou o município a incrementar a segregação de massas. Tratava-se da fixação de marco temporal quanto ao ingresso de servidores. Os benefícios previdenciários a serem concedidos aos mais antigos permaneceriam a cargo do caixa-geral enquanto os mais recentes estariam amparados por fundo contributivo atuarialmente equilibrado e incomunicável com o regime de caixa. E assim procedeu o município para com os servidores que ingressaram em cargos de provimento efetivo até 9 de setembro de 2001 e instituindo regime de capitalização para os ingressos a partir de 10 de setembro de 2001, conforme artigo 94 da Lei Complementar Municipal 478/2002.

O regime de capitalização, segurador dos servidores que ingressaram no quadro estatutário de Porto Alegre a partir de 10 de setembro de 2001, nasceu equilibrado e assim permaneceu, tornando-se superavitário ao longo do tempo. Todavia, no plano dos últimos governos municipais, não bastava manter o equilíbrio. Era necessário torná-lo cada vez mais superavitário para socorrer o outro regime e aliviar o caixa-geral do município, a quem competia pagar sua dívida previdenciária via custeio dos benefícios do regime de repartição simples. Tanto é que a aprovação da lei de segregação de massas incluiu 1.999 pensionistas em regime de capitalização e, mesmo assim, o equilíbrio atuarial foi mantido, mostrando que a majoração da alíquota em 2017 e as reformas de 2021 eram desnecessárias.

A distorção da verdade fática iniciou pela ocultação de que os dois regimes previdenciários de Porto Alegre que compõem o sistema próprio são independentes e incomunicáveis e que o equilíbrio atuarial só é possível de ser averiguado em relação ao regime de capitalização. Em relação ao regime repartição simples ou de caixa é inviável, dada a fragmentação de solidariedade intergeracional, decorrente da já referida segregação de massas, bem como pela inexistência de aportes financeiros de todo o período transcorrido antes de setembro de 2001. 

O incremento do maquiavélico plano governamental esbarra no ordenamento constitucional. O art. 9º, § 1º, da Emenda Constitucional nº 103/2019, literalmente determina: “Art. 9ª, § 1º. O equilíbrio financeiro e atuarial do regime próprio de previdência social deverá ser comprovado por meio de garantia de equivalência, a valor presente, entre o fluxo das receitas estimadas e das despesas projetadas, apuradas atuarialmente, que, juntamente com os bens, direitos e ativos vinculados, comparados às obrigações assumidas, evidenciem a solvência e a liquidez do plano de benefícios”. A parte destacada do texto legal neste parágrafo transcrito foi ignorada pelos últimos governos municipais que propositalmente desprezaram a existência de crédito previdenciário de R$ 2,954 bilhões, apurado em maio de 2001, em face do município, para forçarem a conclusão de déficit do sistema.

Acaso a apuração do equilíbrio atuarial se pautar pela desconsideração da segregação de massas incrementada em Porto Alegre, com a consequente unificação dos ativos e passivos, por que os cálculos atuariais do Previmpa nunca consideraram o crédito previdenciário de R$ 2,954 bilhões apurado pela Caixa Seguros em maio de 2001? Na verdade, para forçarem a conclusão do fantasioso déficit, unificaram os encargos e ignoraram parte das fontes destinadas a custeá-los.

Com o intuito destrutivo do já equilibrado sistema previdenciário, de modo a utilizar os valores acumulados para transferir aos municipários os encargos previdenciários assumidos pelo município, foram apresentados e aprovados na Câmara Municipal vários projetos. Em consequência, resultaram na edição das seguintes leis: 

- Aprovação da Lei Complementar nº 818/2017, que majorou a contribuição dos segurados de 11% para 14%, ignorando o alerta do Conselho de Administração (CAD) acerca da sua desnecessidade; 

- Aprovação da Lei Complementar nº 839/2018, que instituiu a previdência municipal e criou fundação gestora denominada Poaprev, desprezou que o projeto foi rejeitado pelo Conselho de Administração, por ser lesivo aos servidores sem garantir qualquer economia ao erário municipal; 

- Aprovação da Emenda 47/2021 à Lei Orgânica do Município de Porto Alegre, que majorou as idades mínimas para as diversas espécies de aposentadorias, igualmente ignorando o parecer desfavorável do Conselho de Administração; 

- Aprovação da Lei Complementar nº 915/2021, que consolidou alíquota previdenciária já praticada, definiu valores de pensão por morte e reduziu a faixa de isenção previdenciária para 2,4 salários mínimos, dentre outras providências, também com desprezo à deliberação do Conselho de Administração; 

- Aprovação da Lei Complementar nº 941/2022, que transferiu à conta do regime de capitalização grupo de pensões que deveriam ser custeados pelo caixa-geral; 

- Aprovação da recente Lei Complementar nº 1.007/2024, que alterou a estrutura administrativa do Previmpa e dos Conselhos Deliberativo e Fiscal, reduzindo significativamente a representação dos servidores e o poder deliberativo do Conselho assim denominado, além de suprimir a livre escolha da presidência. Ao invés de os Conselhos atenderem seus propósitos constitucionais e controlarem os atos de gestão do Previmpa, eles passam a ser controlados pelo governo municipal. 

Os diversos pareceres emitidos pelo Conselho de Administração, contrariamente às reformas contempladas nos projetos governamentais comprovam a desnecessidade e a lesividade tanto ao patrimônio do caixa previdenciário como aos direitos dos segurados e dos pensionistas do sistema próprio de previdência.

Ressaltamos também que o ataque ao Previmpa teve início em 2009, na gestão do prefeito José Fogaça, pois com a aprovação da Lei Complementar 651/2009 o governo suprimiu do Conselho de Administração a prerrogativa de indicar o diretor Previdenciário e os diretores Administrativo e Financeiro, passando para o Executivo a indicação, interferindo sobremaneira na autarquia, ou seja, começa aí a sanha governamental para controlar o fundo de previdência. 

A redução de direitos e/ou a majoração de alíquotas dos segurados e pensionistas em sistema equilibrado esbarra na ordem constitucional. Aliás, o equilíbrio atuarial estabelecido pela Constituição Federal não se limita a vedar o déficit. Ele veda também o superávit, que já se fazia presente antes da reforma da previdência municipal e que foi por ela majorado. 

No envio dos supracitados projetos à Câmara Municipal, o Executivo Municipal ignorou os pareceres emitidos pelo Conselho de Administração do Previmpa, também denominado Conselho Deliberativo pela Lei Federal 9.717/1997 e pela recente LCM 1.007/2024. Em março de 2021, a ousadia do Executivo Municipal ultrapassou todos os limites, culminando com ameaças públicas à presidência do Conselho de Administração do Previmpa, com o evidente propósito de intimidar o órgão de controle no exercício de suas atribuições legais. Aliás, a verdade é incômoda para quem se vale da seletividade nas narrativas acerca da previdência municipal. 

Imprescindível repisar que o dinheiro, os créditos e o patrimônio imóvel do regime de capitalização não integram o erário municipal à disposição do governo para custear outras despesas de seu encargo. Estão vinculados à intransponível finalidade previdenciária de garantir os direitos de seus titulares, que são o conjunto de segurados e pensionistas que contribuíram e contribuem para a alimentação do fundo.

Basta de falácias acerca de nosso sistema próprio de previdência. A verdade é essencial à democracia e à civilidade humana. 

*Os autores são ex-presidentes do Conselho de Administração do Departamento Municipal de Previdência dos Servidores Públicos do Município de Porto Alegre (Previmpa), Luciane Congo (2015-2017), Edmilson Todeschini (2018-2022) e Adelto Rohr (2022-2024).

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

 

Edição: Marcelo Ferreira