Rio Grande do Sul

SISTEMA DE PROTEÇÃO?

O mestre das gambiarras

Depois do Estado nulo que sucedeu o Estado mínimo, historiador sugere o Estado gambiarra como nova fronteira neoliberal

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Bombeiros que tiveram de acudir o portão do cais em Porto Alegre colocando sacos de areia porque não teve vedação apropriada - Foto: Giulian Serafim / PMPA

"A gambiarra é uma arte para poucos"
Renilmar Fern0andes

[contém ironia]

Ricardo Rosas, em “Gambiarra: alguns pontos para se pensar uma tecnologia recombinante” apresenta interessantes insights para avaliar algumas ações do prefeito de Porto Alegre durante a enchente. Como se sabe, com as chuvas de maio, uma série de omissões da prefeitura no que se refere à manutenção da infraestrutura de drenagem veio a público: motores de casas de bombas foram emprestados entre si para sanar a sua falta em regiões alagadas da cidade; os portões do Cais do Porto, então integrantes do sistema de proteção da cidade, tiveram de ser retirados devido a falta de manutenção, derrubando-se seus portões para depois, com a necessidade de novo fechamento, terem de ser improvisados sacos de areia.

Em todas estas situações, de caráter emergencial em vista da enchente que tomava conta da cidade, o elemento que os une é, definido por Rosas, “um elemento talvez essencial em seus funcionamentos, sem o qual não teriam funcionado. Elemento que talvez tenha passado quase despercebido, tão subliminar e imperceptível na feitura, mas crucial na execução: as ações foram executadas provavelmente a partir de recursos restritos ou precários, com dispositivos gerados no improviso, ou seja, gambiarras”.

Na fotografia amplamente divulgada na imprensa que mostra bombeiros que tiveram de acudir o portão do cais colocando sacos de areia porque não teve vedação apropriada, eles estavam fazendo uma gambiarra. Quando o prefeito, para evitar que as tampas da boca de lobo estourassem mais uma vez, em nova imagem que rodou as redes sociais, colocou sacos de areia pesados para evitar que elas estourassem, ele estava fazendo outra gambiarra para as chuvas do dia 16. É com base em ações similares que Rosas pergunta: “o que é, afinal, a gambiarra?”

Rosas inicia com a definição do dicionário Houaiss, que define gambiarra a partir do famoso puxadinho, ou gato: “extensão puxada fraudulentamente para furtar energia elétrica” ou à definição mais comportada de “extensão elétrica, de fio comprido, com uma lâmpada na extremidade”. Afirma que a gambiarra é aplicada correntemente pelo senso comum para definir “qualquer desvio ou improvisação aplicados a determinados usos de espaços, máquinas, fiações ou objetos antes destinados a outras funções, ou corretamente utilizados em outra configuração, assim postos e usados por falta de recursos, de tempo ou de mão-de-obra”.

O prefeito tem algo do que se orgulhar: o de ter introduzido a gambiarra na administração pública. Não é notável que um governo neoliberal, caracterizado pela redução da participação do Estado no campo público tenha encontrado na forma mais econômica de produção popular a referência para ações de proteção à cidade? A questão é que, melhor do que precaver, que é muito caro, melhor é fazer... gambiarras, que é muito mais barato, atende aos interesses do mercado não somente de Estado mínimo ou Estado nulo, na proposta da jornalista do Sul21 Ana Ávila, mas de um estado gambiarra onde, como diz o autor, importa “uma solução rápida e feita de acordo com as possibilidades à mão”? Gratidão aos neoliberais que sempre sonharam com isso quando desejaram o Estado mínimo. O Estado mínimo é o Estado gambiarraguês, eis nossa descoberta.  

Como diz Fernandes em nossa epígrafe, isso transforma o nosso prefeito em um... artista! Ele poderá apresentar as gambiarras que criou em Salões de Arte de norte a sul do país. Como se sabe, a gambiarra é um recurso também da esfera artística.

Rosas cita um ensaio sobre o tema da gambiarra nas artes brasileiras intitulado “O malabarista e a gambiarra”, onde sua autora, Lisette Lagnado, sugere que “a gambiarra é uma peça em torno da qual um tipo de discurso está ganhando velocidade. Articulação de coisas banidas do sistema funcional, a gambiarra, tomada “como conceito, envolve transgressão, fraude, tunga – sem jamais abdicar de uma ordem, porém de uma ordem muito simples”.

Sim, é uma fraude como política de proteção, é uma tunga face aos impostos do cidadão, mas veja o detalhe: a imagem dos bombeiros procurando vedar o portão com sacos de areia é também uma obra artística pois, nos termos de Lagnado, isso deve-se ao fato de que o mecanismo da gambiarra, além de estético, sempre tem um acento político.

O mesmo se pode dizer dos sacos de areia colocados pelo prefeito sobre as tampas dos bueiros. Aqui, essa gambiarra está mais para o conceito de bricolagem de Claude Lévi-Strauss, autor de “O pensamento selvagem”, do que dos técnicos do Dmae, que aliás devem estar se sentindo envergonhados com a iniciativa. Eles falaram tanto da necessidade de limpeza dos bueiros, para todos, mas principalmente para os governantes, e agora quando a desgraça acontece, só resta inventar uma gambiarra, colocar sacos de areia sobre os tampões. É uma bricolagem porque o bricoleur é “aquele que trabalha com suas mãos, utilizando meios indiretos se comparado ao artista”, como define Levi-Straus.

Com tantos engenheiros no Dmae para fazer um projeto consistente, eis que o prefeito se define por sua instrumentalidade, e como diz Rosas “com elementos que são recolhidos e conservados em função do princípio de que “isso sempre pode servir”. E pega os sacos de areia largados em um canto para resolver os problemas da cidade, expediente que revela a ausência de um plano pré-concebido contra falhas do sistema de proteção e afastado das recomendações dos técnicos.

Nosso prefeito é mais de que um artista, é um bricoleur. Lévi-Strauss distingue o bricoleur do engenheiro porque o primeiro faz essa livre criação além dos manuais de uso e das restrições projetuais da funcionalidade. Seus consertos, improvisos e invenções caracterizam uma prática essencialmente de bricolage no serviço público.

A gambiarra enfim foi sacramentada, saiu do universo de criação popular e transformou-se numa prática ou intervenção pública na esfera social. Rosas aponta alguns dos seus elementos “a precariedade dos meios; a improvisação; a inventividade; o diálogo com a realidade circundante local, com a comunidade; a possibilidade de sustentabilidade; o flerte com a ilegalidade; a recombinação tecnológica pelo reuso ou novo uso de uma dada tecnologia, entre outros”.

Nesse improviso constante, os empréstimos de equipamentos de drenagem de outros governos são também um elemento típico de gambiarra. Se as outras prefeituras tem equipamentos de drenagem sobressalentes, é porque investiram na segurança, prevendo que, eventualmente, seus equipamentos poderiam falhar. Porque a prefeitura não fez isso também? A resposta encontra-se na defesa do Estado mínimo mais uma vez.

Elevado a política pública, a gambiarra é a prova do improviso diário do prefeito para a sobrevivência, “adicional criativo” em meio ao caos e a pobreza diária, diz Rosas. Mas não são exatamente estas as características da administração neoliberal? Sua fúria na redução de equipamentos, na não contratação de novos profissionais, na precarização das instituições de saneamento não é responsável pelo fato de que o Dmae chegou ao ponto de ser obrigado a fazer gambiarras no sistema de proteção às cheias?

O desastre não foi produzido também pela pobreza em que a administração neoliberal transforma o poder público, isso sem falar, com a extinção do DEP, um verdadeiro atentado a organização da cidade. Hoje, a administração pública baixou ao nível dos gatos, das fiações de energia elétrica ilegais e toda uma parafernália que já fazem parte do escopo de gambiarras particulares.

As gambiarras do prefeito estão no mesmo nível das bicicletas com caixas de som para propaganda de rua, e quem sabe, ali adiante, estarão nos museus de arte junto com as fotos de Gabriela de Gusmão Pereira ou vídeos de Cao Guimarães, artistas que tematizam as gambiarras. E ali, junto com artistas renomados, o prefeito poderá oferecer sua interpretação sutil e sofisticada do uso dos sacos de areia, dividindo espaço com tubos de batatas Pringles usados para invasão de redes digitais.

Paulo Nenflidio que se cuide. O artista que criou engenhocas e geringonças sonoras como a bicicleta Maracatu, outra gambiarra, perde feio considerando as obras feitas em Porto Alegre devido às enchentes. Como os artistas de vanguarda, o prefeito vai além da reciclagem para fins de inclusão social. Aliás, o próprio foi o primeiro a conseguir que os fundos destinados a este público fossem retirados ao mesmo tempo em que a matéria prima que tais usinas de reciclagem necessitam ficam em excesso nas ruas dos bairros Humaitá e Sarandi. Aqui, a prática que tem o risco de se tonar base da administração neoliberal.

Como até hoje não pensaram nisso os neoliberais? De que há um limite além do qual podem ir as políticas públicas e que não gera custo algum? Os cientistas sociais deverão engajar-se para o entendimento das gambiarras do governo atual como uma nova forma de entender o futuro do neoliberalismo no estado na contínua reinvenção e prática de gambiarras.

Diz Rosas: “A gambiarra é, sem dúvida, uma prática política. Tal política pode se dar não apenas enquanto ativismo (ou ferramenta de suporte para ele), mas porque a própria prática da gambiarra implica uma afirmação política”. Evidente que aqui, no caso, a gambiarra não nega a lógica produtivista capitalista, ao contrário, é seu melhor instrumento de redução de custos, o mais perfeito, e nesse sentido, reinventa a lógica neoliberal porque reinventa a forma de prestar política pública.

Nesse sentido, às avessas, pode ser entendida outra definição de Rosas: “a gambiarra é ela mesma uma voz, um grito de liberdade, de protesto ou, simplesmente, de existência, de afirmação de uma criatividade inata. Por outro lado, ela não necessariamente implica um ‘produto final’, pois também é processo, um work in progress. Talvez o processo seja mais importante, talvez exatamente porque a gambiarra nunca é final, sempre há algo para acrescentar ou aprimorar.”

Sim, esse algo mais é sua própria apropriação pelo sistema capitalista. Ela se torna a voz de um sistema predador que não aguenta mais sequer fazer o mínimo pela sociedade. Como grito de liberdade do capital, significa afirmação de sua existência exclusiva para o lucro e pelo lucro, de que todo o recurso do Estado deve ir para o sistema financeiro. Não foi exatamente assim com os recursos do Dmae em depósitos bancários, enquanto que o sistema de proteção das cheias naufragava sem manutenção?

A gambiarra é a nova tática de guerrilha neoliberal. É parte da sua estratégia repassar para a comunidade o que é sua obrigação, agora sob o novo argumento de na crise, é a sociedade que salva a sociedade. Não, o Estado importa, tem responsabilidades. Esse discurso é falso: é o serviço público que salva. Mas para os neoliberais, interessa fazer parecer que não foram policiais, bombeiros, servidores do Dmae, que estiveram o tempo todo voltados para a tragédia. Faz-se mostrar a imagem de que se manteve a existência de inúmeros abrigos baseado no serviço de voluntário. Como pode práticas de auto sustentação da comunidade esse transformarem em políticas públicas?

Diz Rosas que terminam se efetuando “com quase nenhum aporte financeiro, apenas se apoiando na vontade de participação e colaboração de quem toma parte.” Seriam as gambiaras do prefeito o futuro das políticas públicas?

Rosas diz que sim. Citando Sterling, autor de design fiction, uma “ficção de design”, forma mais “desenhada” de ficção científica, ele imagina nosso futuro a partir de nossa relação com os objetos. Em seu mais recente livro, Shaping Things, uma espécie de libelo do design sustentável para o futuro, ele acredita que estamos em perigo “porque desenhamos, construímos e usamos hardware desfuncional”.

Sterling, muito sensatamente, nos diz que a presente forma de exploração das classes dominantes usa formas arcaicas de energia e materiais que são finitos e tóxicos. Tal regime destrói o clima, envenena a população e gera guerras por recursos. Ou seja, não tem futuro. Não é similar esta descrição ao que vemos nas gambiarras do prefeito, uma outra forma de exploração, já que tais recursos usam de materiais arcaicos? E não é verdade que os bairros da zona Norte estão procurando pelo serviço de remoção de entulhos de suas ruas, matérias que estão se tornando tóxicas para aquelas populações a medida que o tempo passa?

Falando de diversos instrumentos citados pelo autor no plano tecnológico, de gadgets à spimes, Rosas diz que Sterling chega a produção do “faça-você-mesmo”, “sofisticação [que não] está muito distante de boa parte das atuais criações de gambiarras”, que na minha interpretação sugere que, no futuro das políticas neoliberais, a gambiarra, o faça você mesmo, será o último estágio do Estado mínimo.  

* Doutor em Educação, autor de O êxtase neoliberal (Clube dos Autores)

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.


Edição: Marcelo Ferreira