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Coluna

Paquistão, crise permanente e ingerência externa

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O ex-primeiro-ministro do Paquistão Imran Khan, derrubado em abril de 2022 por voto de desconfiança e ingerência externa; foto de 19 de novembro de 2020 - Wakil Kohsar/AFP via Getty Images
O aliado da China se vê constantemente atingido pela instabilidade provocada pelos EUA

Como uma sina cíclica que se repete e novamente ocorre, mais uma vez a potência do sul da Ásia, o Paquistão, está envolto em crise política doméstica. Trata-se de uma sociedade complexa, com grandes dificuldades na administração interna e um inimigo estratégico perene. Ao mesmo tempo, é a única potência nuclear dos países de maioria islâmica, com um aparelho de Estado altamente profissional e um conjunto completo de forças armadas, serviços de inteligência e indústria de defesa que se complementa.

Como um pivô geopolítico e aliado da China, se vê constantemente atingido por duas vertentes. Uma, a frente da política nacional, onde de fato a simbiose entre a maldita herança britânica e uma elite erudita quase estamental não coaduna com as necessidades das maiorias (ou da maior parte dos vários segmentos do país). Outra frente, a que nos dedicamos mais a comentar, é a da vulnerabilidade externa e a instabilidade também provocada pelos Estados Unidos.

O ex-primeiro ministro Imran Khan acusa diretamente a diplomacia e a inteligência dos EUA de haver movido suas capacidades para ajudar na derrubada de seu governo. Ao mesmo tempo, nada mais efetivo do que um ataque financeiro, retirando do país suas defesas econômicas e abalando a soberania através da fragilidade contra a sua moeda.

Em maio deste corrente ano, a rúpia paquistanesa sofreu sua maior desvalorização (7%) desde março de 2020. “Incrível coincidência” com a crise política provocada também por interesse ocidental, o FMI aponta a necessidade de um pacote de “ajuda” da ordem de 2 a 3 bilhões de dólares, de modo a dar conta dos compromissos diante de um déficit anual previsto entre 36 a 37 bilhões de dólares. Caso contrário, pode declarar o país em “default”.

Impressiona que os argumentos de chantagem são sempre os mesmos. Obviamente que “consultores especializados”, como a filial asiática da agência de “risco” Fitch já prognosticou o problema de insolvência e “perigosa dívida pública”. Balela, pois dívida em moeda soberana não pode gerar falência, daí o ataque especulativo contra as moedas nacionais de potências médias.

A conspiração dos Três Patetas

Vejamos o que ocorre no nível político de forma concomitante. Em 09 de abril de 2022, a maldição do primeiro ministro paquistanês cai sobre os ombros do ex-craque da seleção de críquete (esporte mais popular no país). Desde a formalização da independência em 1947, nenhum premiê completa seu mandato de cinco anos. Com Imran Kahn, passou o mesmo. Em um parlamento com 342 assentos, recebeu o voto de desconfiança de 174 parlamentares.

Não podemos nos dar o luxo nem de sermos ingênuos e tampouco panfletários. Os problemas endêmicos e estruturais possivelmente deram o combustível para a queda de Imran, assim como de seus antecessores, com exceção dos governos militares. Ao mesmo tempo, a crise perene foi aproveitada pelos interesses externos, e dessa vez não basta responsabilizar o Hindustão (Índia).

A manobra dos EUA teria ficado mais evidente quando o líder do Partido Movimento Paquistanês pela Justiça (PTI) se aproxima do Kremlin e faz gestos de cooperação econômica eurasiática no início da crise que leva ao conflito russo-ucraniano. Vale recordar, Nova Déli sempre foi cliente de armas da União Soviética e manteve boa parte do armamento com padrão russo. Já o Paquistão, tem padrão de sistemas de armas chineses e muita – e incômoda – presença de forças militares estadunidenses. O alto comando militar se sentiu desafiado e deu o sinal verde para a agressão externa.

Khan manteve a agenda de reuniões com o chefe de Estado russo Vladimir Putin, mas a chancelaria paquistanesa retira a informação de atos oficiais, afirmando que teria sido uma iniciativa do Executivo, algo como “diplomacia presidencial”. É o início do fim.

Imran Khan acusa formalmente aos três líderes políticos do país a rivalizar diretamente com seu mandato:

“Mas o mais perturbador é que nosso povo, que está sentado aqui, está em contato com potências estrangeiras. São os ‘três patetas’ – o presidente do PML-N Shahbaz Sharif, o co-presidente do PPP Asif Ali Zardari, e o chefe do PDM, Maulana Fazlur Rehman.”

E complementa o ataque com um dado irrefutável:

“O que faz dos três patetas aceitáveis para as potências estrangeiras? Vou dizer por que eles são aceitáveis. Durante o mandato do ditador Pervez Musharraf, apenas 11 ataques de drones ocorreram, mas depois deles, durante os dez anos de [PPP e PML -N’s], 400 ataques de drones ocorreram.”

Pervez Musharraf governou o país sob lei marcial de 2001 a 2008, sendo derrubado por um impeachment. Em sendo um general de quatro estrelas, operou com maestria o jogo de sombras nas áreas tribais sob administração federal, confrontou o cenário complexo do Waziristão e aprofundou o pecado original ao complementar o ISI (o mais poderoso Serviço de Inteligência Paquistanês) com a proteção à Al Qaeda e a não agressão ao Talibã. Foi derrubado por um impeachment acertado e perdeu a mão de ferro e o protagonismo dos militares profissionais na política nacional.

Infelizmente, foi muito subserviente aos EUA o período seguinte. Dois partidos históricos macularam seu capital político, formando a aliança de governo posterior ao tempo do general Musharraf em Islamabad. O país esteve sob coando dos herdeiros de Benazir Bhutto do PPP (Partido Popular do Paquistão) e a PML-N, uma das sucessoras da histórica Liga Muçulmana do Paquistão. Trata-se da versão moderna da força política herdeira direta dos fundadores do país, a Liga Muçulmana de Muhammad Ali Jinnah e Liaquat Ali Khan. Ao permitirem operações por aviões não tripulados decolando de seu território soberano, o governo nacional se torna cúmplice de terrorismo imperialista e de Estado. Na opinião deste que escreve, o ex-astro do críquete tem razão.

A outra força política liderada por um dos “três patetas” é o PDM, uma frente entre diversas correntes de opinião e posicionamentos fundada para ser o instrumento ocasional de oposição, em setembro de 2020.

É importante ressaltar o óbvio. Evidente que manobras parlamentares e a condição irascível de Imran Khan podem ter sido cruciais para a perda de apoio interno. Mas ignorar o cenário complexo gerado pela presença dos EUA durante as duas guerras do Afeganistão, e acentuada com a aliança estratégica no plano econômico entre Paquistão e China, é afirmar o negacionismo como forma de propaganda política. Ou seja, o inverso da análise que procuramos produzir.

Um destes fatores relacionado os ambientes externo e interno é o papel dos altos mandos militares. O general Qamar Javed Bajwa (crítico da ofensiva russa na Ucrânia), chefe do Estado Maior do Exército paquistanês e o tenente-general Faiz Hameed, ex-comandante do temido ISI (Inter-serviços de Inteligência) teriam sido pivôs, tanto na ascensão eleitoral de Imran Khan como na “autorização” para sua derrocada. Na queda de braço interna da caserna, Javed Bajwa saiu vitorioso. Na frente política, Shehbaz Sharif assumiu o cargo de Primeiro Ministro.

A crise é contínua e a violação de soberania também 

Em fevereiro deste ano, o então premiê Imran Khan tomou sérias medidas para aliviar o custo de vida, controlando preços administrados como petróleo e energia elétrica. A resposta foi um ataque contra a soberania paquistanesa, mas eficiente do que um bombardeio de regimento sikh na Cachemira. A agência de “risco” Moody’s rebaixou a nota do país. Se um governo nacional faz o mínimo para defender sua população, o ataque externo é imediato, assim como a resposta na política doméstica. A luta política de 2022 no Paquistão ainda não terminou.

* Este artigo foi originalmente publicado no portal Monitor do Oriente Médio

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** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira