Além da pandemia de covid-19 que afeta praticamente todos os países do mundo vivemos também uma das mais poderosas crises do capitalismo moderno. Mesmo antes da pandemia e das medidas de isolamento social e redução do fluxo de pessoas a economia mundial já dava sinais claros de uma crescente deterioração e as condições de vida da população vêm decaindo aceleradamente, sobretudo na periferia do capitalismo, como é o caso da América Latina onde se encontra o Brasil.
Em terras brasileiras, a crise (tanto da covid-19 quanto da economia) vêm ganhando contornos mais radicais na medida em que avançam as políticas neoliberais levadas adiante pelos dois governos que se sucederam no Poder Executivo (Governo Temer e Governo Bolsonaro) após a destituição ilegal da Presidenta Dilma Rousseff que configurou o Golpe de Estado de 2016. Os números de desemprego crescem a passos largos e o próprio regime político prevê um crescimento da taxa de desemprego que deve chegar a 14,2%1 até o final deste ano, de acordo com pesquisas encomendadas pelo Senado Federal.
Em verdade, estes dados são ainda muito tímidos, pois as estáticas de desemprego não incluem em seus cálculos e previsões um conjunto muito amplo e diversificado de trabalhadores – só em maio deste ano 1 milhão de trabalhadores perderam o emprego de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
É nesse cenário, marcado pelo desemprego crescente, crise econômica e sanitária descontrolada e aprofundamento de políticas neoliberais agressivas – vide o Projeto votado no Senado sobre a “privatização da água” – que vem se construindo o chamado “Breque dos Apps” que promete paralisar as ações de uma série de empresas que operam por aplicativos na próxima quarta-feira, dia 1° de julho. A paralisação parte justamente do setor mais fragilizado associado e estas empresas, os entregadores, que não possuem vínculo formal de trabalho com os aplicativos e estão submetidos a longas e perigosas jornadas de trabalho. Os principais alvos da paralisação são as companhias que atuam com serviços de entregas, principalmente do setor de alimentação, vinculados a restaurantes, bares, lanchonetes e vários outros, no qual se destacam IFood, Rappi, Uber Eats e Loggi, responsáveis por grande fatia desse mercado no Brasil e em vários outros países [1].
Os entregadores de aplicativos, comumente conhecidos por aqui como “motoboys”, são apontados como um dos principais setores vitimados pela flexibilização e precarização do trabalho que desobriga as empresas a oferecem garantias ao trabalhador (folgas, remuneração mínima, plano de saúde, contribuição previdenciária, entre outros) e transfere para os trabalhadores todos os riscos de sua atividade laboral, riscos que vão desde possíveis acidentes de trabalho até o risco de morte – visto que a categoria continua operando durante todo o período de pandemia de covid-19.
Acontece, que mesmo sem o vinculo formal com as empresas os entregadores de aplicativos tem configurado cada vez mais uma categoria profissional, com estreitos laços entre os trabalhadores que dividem não apenas as penúrias e dificuldades da atividade que exercem, mas que também compartilham dos mesmos sentimentos de insegurança, revolta e insatisfação o que torna possível uma ação conjunta e organizada contra as empresas em favor de melhorias para a categoria.
Os organizadores da paralisação estimam que a adesão ao Breque é de aproximadamente 98% da categoria, isso apenas no Brasil, pois ela já se tornou um movimento internacional e está programada para ocorrer em ao menos mais sete países: Argentina, Austrália, China, Chile, Equador, México e Inglaterra.
Dentre as várias pautas da greve dos entregadores as principais são o aumento do valor pago pelas empresas por Km percorrido, o aumento do valor mínimo pago pelas entregas e o fim dos desligamentos e bloqueios indevidos – realizados pelas empresas como forma de punir os trabalhadores sem que tenham o direito de contestação. Vários relatos dão conta de entregadores “pagando para trabalhar”, ou seja, recebendo valores tão baixos que nem mesmo cobrem os gastos da atividade que realizam.
Como o trabalho dessa categoria se organiza como um tipo de atividade “just in time” por plataforma (traduzido como ‘na hora certa’), que mantém os entregadores permanentemente à disposição das empresas aguardando a distribuição das entregas, não há limite para a jornada de trabalho e muitos dos entregadores precisam fazer turnos de mais de 12 horas para garantirem uma renda de subsistência.
Por meio de várias páginas nas redes sociais os entregadores divulgam manuais de orientação para a ação tanto dos trabalhadores quanto dos usuários dos aplicativos com a intenção de aproximar estes dois setores e aumentar a pressão sobre as empresas. Além disso, as redes sociais também são úteis na divulgação da mobilização da categoria com a publicação de uma série de vídeos com chamados à paralisação e ainda vídeos que dão conta de centenas de entregadores circulando por várias cidades brasileiras como “aquecimento” para o Breque do dia 01/07/2020.
Tudo isso precisa ser levado em consideração para sabermos o que esperar do Breque dos Apps do próximo dia primeiro. Sem dúvida, podemos esperar uma paralisação muito ativa com graus de adesão ainda incertos, pois as empresas trabalham dia e noite para sabotar a greve (o que não é nenhuma surpresa). Pontos de concentração e de agitação já foram marcados por todo o país e os organizadores pretendem impedir direta e indiretamente o funcionamento dos sistemas de entrega, ação cujo impacto econômico e político pode virar o jogo e ampliar o poder de pressão e negociação da categoria de forma determinante.
A internacionalização da paralisação é outro sinal positivo que indica caminhos para uma ação cada vez mais articulada e potente que já não pode ser ignorada pelas empresas. Finalmente, o Breque dos Apps já se converteu em uma das atividades mais importantes de luta contra precarização do trabalho no Brasil no último período e parece ser o ponto alto de um processo de ação e organização política que vêm se consolidando desde o início do ano – vale lembrar que os entregadores já organizaram outros atos próprios e participaram ativamente de atos convocados por outros setores. Cabe ao sindicatos e centrais sindicais se aproximar ainda mais do movimento e estreitar suas relações ensinando, mas também aprendendo, táticas e estratégias de luta que podem ampliar ainda mais os horizontes de luta e de vitórias dessa categoria.
[1] Dados levantados pelo Instituição Fiscal Independente (IFI)
* Leonardo Rodrigues Limeira é graduado em Ciências Sociais pela UFRGS e atualmente cursa pós-graduação em Relações Internacionais na mesma instituição. Se dedica à pesquisa sobre trabalho precário no Brasil.
Edição: Marcelo Ferreira