“Todas as semanas de uma pandemia são críticas, e todas exigem o maior cuidado que pudermos dar. Elas podem mudar radicalmente de acordo com o nosso comportamento coletivo. Não gosto de usar o medo como motivador de mudança de comportamento - não funciona por muito tempo e geralmente não atinge as pessoas que precisam ouvir (se medo funcionasse, ninguém fumaria depois de ver aquelas fotos horríveis nas embalagens de cigarros).
Estas duas próximas semanas são muito críticas sim. O perigo da coisa desandar é muito grande, tenham medo, por favor. Uma única boa notícia? Reforçar as medidas de distanciamento ajuda a prevenir essas e outras doenças também. Então, quer você acredite em pandemia ou em gripe comum (lembrando que a gripe comum também causa mortes), tome um cuidado extra nestas duas semanas e FIQUE EM CASA SE PUDER.”
Na semana que o Brasil se aproxima das 55 mil mortes causadas pelo novo coronavírus, e em que as mortes por covid-19 supera outras causas de morte no Rio Grande do Sul, a reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, médica cardiologista pediátrica e professora de Epidemiologia, Lúcia Campos Pellanda, usou as redes sociais para fazer um apelo à população. O objetivo, chamar atenção para os riscos ao esgotamento do sistema de saúde e da importância de se manter o distanciamento social.
O estado tem 70,5% dos leitos de UTI ocupados e registra até o momento 23.060 casos confirmados, com 509 mortes. A cidade de Novo Hamburgo, região Metropolitana, por exemplo, registrou 100% da ocupação em seu hospital público, o município tem 598 casos confirmados. Porto Alegre tem 73,5% dos leitos ocupados e 3171 casos confirmados. A capital gaúcha, assim como Novo Hamburgo, Capão da Canoa, Canoas e Palmeira das Missões foram postas com bandeira vermelha essa semana. As bandeiras https://distanciamentocontrolado.rs.gov.br/ são usadas para designar o grau de risco de cada região do estado, e são classificadas como: amarela, laranja, vermelha ou preta.
Em entrevista por email ao Brasil de Fato RS, Lucia fala sobre o momento atual e a importância de conter a contaminação. “No momento em que vivemos, talvez seja necessário realmente o lockdown para conter a pandemia nos lugares onde há possibilidade de esgotamento da capacidade de atendimento”.
Confira a íntegra da entrevista.
Brasil de Fato RS - A senhora fala de que as próximas semanas serão críticas, de que forma?
Lucia Campos Pellanda - As próximas duas semanas são críticas por dois motivos: a situação piorou muito nas últimas duas semanas. Se isso se mantiver, um esgotamento da capacidade de atendimento do sistema de saúde é possível. E daqui a duas semanas chegamos em um momento que normalmente já é de UTIs cheias todos os anos, o auge das internações por doenças respiratórias. A semana 27 sempre é de lotação de UTIS todos os anos, estamos na 25. No entanto, todas as semanas de uma pandemia são críticas, e todas exigem o maior cuidado que pudermos dar.
BdFRS - Distanciamento e isolamento social estão entre as principais medidas de combate à proliferação. Em mais um final de semana ameno, vimos, em Porto Alegre um aumento de pessoas na Orla e outros passeios, como a senhora vê isso?
Lucia - Acho muito importante haver uma mensagem bem clara de que não há normalidade, as aglomerações são muito perigosas e que qualquer saída desnecessária pode sobrecarregar o sistema. Estamos todos conectados, se eu juntar 10 pessoas em uma festinha ou churrasco, estou impedindo um trabalhador de abrir seu pequeno comércio ou fazer sua atividade autônoma, porque vai aumentar a circulação do vírus.
É isso o que a população precisa entender: quem pode ficar em casa ajuda imensamente quem precisa sair. É de importância extrema continuarmos com essas medidas neste momento. Quanto maior a adesão às medidas, mais chances temos de reverter este quadro.
BdFRS - O que mais deveria estar sendo feito?
Lucia - A principal ação é a de prevenção da circulação do vírus, ou seja, comunicação clara e informação correta. É muito importante contrapor a onda de notícias falsas, pois isso tem tido um impacto direto sobre o controle da pandemia.
As demais ações, também muito importantes, dependem desta primeira. Pois aumento de leitos e da capacidade de atendimento é extremamente importante, mas tem um limite, que se esgota rapidamente em uma situação de crescimento exponencial de casos.
BdFRS - Qual é o momento certo para se fazer o relaxamento das medidas?
Lucia - A OMS estabeleceu algumas condições para reduzir as medidas de distanciamento: 1. Transmissão controlada, o que quer dizer que todos os contatos voltam a ser rastreáveis, ou seja, é possível identificar rapidamente os casos novos, de onde vieram, testar e isolar todos os seus contatos.
2. Capacidade do sistema de saúde, incluindo leitos, equipamentos e testes em quantidade suficiente. Aqui é importante lembrar que, apesar de ser possível criar mais leitos e comprar mais equipamentos, as pessoas têm um ponto de esgotamento. Os profissionais de saúde precisam ser protegidos e não podem trabalhar 24/7, como um equipamento.
3. Minimização do risco de surtos em contextos de alta vulnerabilidade. É importante ter planos de ação, e não contar apenas com a solidariedade e organização das próprias comunidades. Há experiências exitosas, mas não são a regra, e sim a exceção.
4. Protocolos de prevenção bem estabelecidos para cada local de trabalho e escolas.
5. Administração dos casos importados: controle de fronteiras, cordões sanitários, contenção dos casos que vem de fora.
6. E, para mim, o item mais importante da lista: COMUNIDADE ALTAMENTE ENGAJADA. Não há como pensar em começar a reduzir uma estratégia que está funcionando sem que se tenha um grande investimento em educação da população. Se as pessoas não entendem que a normalidade vai demorar muito e que será preciso colaborar com o bem comum, não há como começar a retomar nada. A pessoa tem que entender que festa no prédio ou juntar os amigos para correr não ajuda em nada a economia, pelo contrário. Cada saída desnecessária prejudica o todo, porque mais demorada vai ser a retomada.
BdFRS - Qual a situação que nos encontramos em relação ao vírus?
Lucia - São muitas epidemias diferentes em diversos estágios em todo o país. No RS e especialmente na região Metropolitana de Porto Alegre. Vemos um agravamento na última semana.
BdFRS - Como a senhora avalia a questão do lockwdown, sua eficácia e que impactos poderia trazer?
Lucia - Etapas das medidas de controle
1. Individual: Redução das movimentações desnecessárias: barzinho, restaurante, festas. Autoisolamento voluntários de quem chegou de viagem ou teve contato com caso suspeito.
2. Instituições: Suspensão das aglomerações: aulas, reuniões, eventos. Trabalho remoto, quando possível.
3. Poder público: Suspensão de todas as atividades não essenciais, permissão para trabalho remoto de funcionários públicos e outros setores, recomendações para a sociedade.
4. Poder público: Lockdown - medidas para reduzir drasticamente a circulação de pessoas, fechamento de todos os serviços não essenciais. Quarentena impositiva dos casos suspeitos.
Cada etapa vai se somando à outra, ou seja, o comportamento individual é essencial em todas. Quanto mais efetiva for a ação em cada etapa, combinada a outras atitudes como testes em todos os suspeitos e busca de contatos, menos a etapa seguinte seria necessária, em tese. Quanto mais as pessoas praticam a restrição voluntária, teoricamente menos é necessária a restrição impositiva.
No entanto, no momento em que vivemos, talvez seja necessário realmente o lockdown para conter a pandemia nos lugares onde há possibilidade de esgotamento da capacidade de atendimento.
BdFRS - Sobre a perspectiva de imunidade de rebanho, segundo a qual, ultrapassando-se um patamar de contaminados, a população ficaria protegida?
Lucia - A imunidade de rebanho ocorre quando há um número suficiente de pessoas imunes, que proteja os que ainda não são. Isso é estudado no contexto das vacinas, por exemplo. Mas aguardar a evolução natural da doença sem fazer nada, aguardando que houvesse imunidade de rebanho antes da vacina não é uma alternativa viável neste momento, representaria um acréscimo de mortes inaceitável.
BdFRS - E também sobre a contaminação de assintomáticos?
Lucia - É um dos problemas mais difíceis de solucionar, e o motivo das medidas de isolamento serem para todos. Porque os assintomáticos acabam contaminando mais, já que circulam mais. Crianças e jovens, por exemplo, entram em contato com um número maior de pessoas e acabam contribuindo para espalhar o vírus.
Edição: Katia Marko